A impunidade do assassino de Hailé Selassié I

Mengistu Haile Mariam, o assassino de Hailé Selassié I, vive em exílio no Zimbábue, desafiando a justiça e a memória histórica.

Cerca de 50 anos após a revolução que derrubou o último imperador da dinastia salomônica, Hailé Selassié I, a justiça ainda parece um sonho distante para os milhares de etíopes que sofreram sob o regime do ditador Mengistu Haile Mariam. Apesar de condenado à morte em 2007 por genocídio e outros crimes contra a humanidade, Mengistu vive exilado no Zimbábue, protegido pelo governo local, deixando um rastro de impunidade que ecoa pelos corredores da história.

Hailé Selassié I: O “Rei dos Reis” e o Pai do Pan-africanismo

Hailé Selassié I, que nasceu como Tafari Makonnen em 1892, foi o líder da Etiópia entre 1930 e 1974, incluindo o período da ocupação italiana, de 1936 a 1941. Descendente direto da linhagem do rei Salomão e da rainha de Sabá, Selassié tornou-se uma figura política e espiritual influente tanto dentro quanto fora da África. Durante seu governo, promoveu a modernização do país, introduzindo a primeira universidade, companhias aéreas e hospitais na Etiópia, além de consolidar a posição do país como membro fundador da Organização da Unidade Africana (atual União Africana).
Mesmo tendo contribuído para o desenvolvimento do país, Hailé Selassié I foi criticado por manter um sistema feudal que alimentava desigualdades. Nos anos 1970, seu governo também ficou marcado por uma fome devastadora, que acabou sendo um dos motivos para sua queda.

No entanto, para os adeptos do Rastafarianismo — um movimento religioso que emergiu na Jamaica nos anos 1930 — Hailé Selassié I era muito mais que um imperador. Ele era visto como a reencarnação de Jah, uma figura messiânica que libertaria os descendentes africanos da opressão colonial e guiaria um êxodo espiritual e físico para a África. A visita de Selassié à Jamaica em 1966 consolidou seu status entre os rastafáris, sendo saudado por milhares, incluindo a família de Bob Marley, que mais tarde se tornaria um dos maiores divulgadores da causa.

Estandarte Real Imperial para Haile Selassie I

Marcus Garvey e o Rei Negro: a profecia que inspirou uma fé global

O Salmo 87 exalta Sião como a cidade escolhida por Deus, um local de glória onde todas as nações se reúnem em harmonia. Para os rastafáris, esse salmo ecoa a visão profética de Marcus Garvey, que previu o surgimento de um rei negro na África como o salvador dos descendentes africanos no Ocidente. Essa profecia foi vista como cumprida com a coroação de Hailé Selassié I, o “Rei dos Reis” e “Leão Conquistador da Tribo de Judá”. Assim, Sião, simbolizada pela Etiópia, tornou-se um refúgio espiritual, enquanto Selassié foi identificado como a personificação de Jah na Terra, fortalecendo a identidade cultural e a fé dos rastafáris em sua busca por libertação e justiça.

A ascensão e os crimes de Mengistu Haile Mariam

Mengistu Haile Mariam, nascido em 1937, foi um dos principais arquitetos do golpe militar que derrubou Hailé Selassié I no ano de 1974. Mengistu, um severo coronel do exército que se tornou um marxista linha-dura, era pouco conhecido do mundo exterior quando liderou um grupo de oficiais do exército na derrubada do imperador.

Como líder do Derg, a junta militar socialista que assumiu o poder, Mengistu consolidou sua posição por meio de expurgos sangrentos, conhecidos como o “Terror Vermelho”. Entre 1977 e 1978, milhares de oponentes políticos foram torturados e mortos. Estima-se que durante seu regime, dezenas de milhares de pessoas tenham sido assassinadas, além de milhares de desaparecidos cujos destinos permanecem um mistério.

Entre os crimes mais infames atribuídos a Mengistu Haile Mariam está o assassinato de Hailé Selassié I. Registros históricos apontam que o imperador foi cruelmente estrangulado em seu leito em 1975 e enterrado em uma cova secreta. Anos mais tarde, após a queda do regime do Dergue, quando os restos mortais foram finalmente localizados, constatou-se que quase todos os ossos de seu corpo haviam sido brutalmente quebrados por seus algozes.

Durante o julgamento de 67 ex-membros da junta militar liderada por Mengistu, os juízes revelaram documentos que descreviam uma reunião realizada em 23 de agosto de 1975, na qual os oficiais decidiram que “Sua Majestade Imperial Hailé Selassié I deveria ser estrangulado por ser o símbolo do sistema feudal”. Em 26 de agosto, o ato foi consumado de maneira cruel em sua própria cama. Este assassinato figura entre os mais de 2.000 homicídios e desaparecimentos supostamente ordenados sob o regime de Mengistu, deixando um legado de horror e impunidade.

Mengistu manteve-se no poder até 1991, quando foi deposto por grupos rebeldes. Fugiu para o Zimbábue em maio daquele ano, onde recebeu asilo do então presidente Robert Mugabe. Apesar de seu julgamento e condenação à morte por genocídio em 2007, o Zimbábue recusou-se a extraditá-lo, permitindo que vivesse em luxo enquanto suas vítimas continuam a esperar por justiça.

Mengistu continua impune no Zimbábue

A memória de Hailé Selassié I e a persistente busca por justiça

O legado de Hailé Selassié I permanece vivo, tanto na Etiópia quanto na diáspora africana. Em 2000, seu corpo foi reenterrado em uma cerimônia discreta na Catedral da Santíssima Trindade, em Addis Abeba. O evento atraiu lideranças religiosas, monarquistas e rastafáris de todo o mundo, reafirmando seu status como um ícone espiritual e histórico.
Por outro lado, a sobrevivência de Mengistu Haile Mariam em exílio ilustra as complexidades da justiça internacional. O Zimbábue, sob a liderança de Mugabe, ofereceu-lhe proteção em troca de apoio político e diplomático. Essa situação, para muitos, é um lembrete de como interesses políticos podem obstruir a busca por responsabilização e reconciliação.

A história de Hailé Selassié I e Mengistu Haile Mariam é um reflexo das contradições da luta por liberdade, poder e justiça na África. Enquanto um representava a continuidade e a resistência contra o colonialismo, o outro simboliza o custo humano de regimes totalitários. A impunidade de Mengistu continua a desafiar os avanços na governança e nos direitos humanos, provando que a justiça é, muitas vezes, uma vitória tardia e incompleta.

O Imperador na capital brasileira: um encontro de nações

Imagine a grandiosidade: em 1960, o Imperador Hailé Selassié I, a majestade que personificava a história e a espiritualidade da Etiópia, desembarcou em Brasília. Recebido com honras no aeroporto Juscelino Kubitscheck, acompanhado de todo o seu ministério, o imperador encantou a jovem capital brasileira. No Congresso Nacional e no Superior Tribunal Federal, Selassié foi homenageado como uma figura de grande prestígio internacional. Em uma cerimônia no Palácio do Planalto, condecorou o presidente Juscelino Kubitscheck com a Medalha de Sabá, a mais elevada honraria da Etiópia, simbolizando laços de respeito e cooperação. Durante sua estadia, o Imperador desfrutou da hospitalidade no icônico Palácio da Alvorada, deixando um marco histórico que uniu as duas nações em um momento de celebração e troca cultural.

Hailé Selassié I e Juscelino Kubitscheck, presidente do Brasil (1960)

Hailé Selassié I em Brasília (1960)

Selo comemorativo da visita de Haile Selassie I ao Brasil

Curiosidades sobre Selassié e Mengistu

1. A coroação de Hailé Selassié I: Foi um evento grandioso, marcado pelo esplendor e pela presença de líderes e autoridades de diversas partes do mundo. À época, o jornal The New York Times estimou que as festividades custaram mais de US$ 3 milhões (equivalente a cerca de R$ 9,5 milhões em valores atuais). O impacto do evento foi tão significativo que a revista Time dedicou sua capa ao novo imperador, consolidando-o como uma figura de destaque e projeção global.

2. Fidel Castro e Mengistu: Em 1977, Fidel Castro desembarcou na Etiópia para oferecer apoio ao regime de Mengistu Haile Mariam, marcando o início de uma aliança curiosa. No ano seguinte, Mengistu retribuiu a visita condecorando Castro com a Grande Ordem da Estrela de Honra da Etiópia Socialista. Quando Mengistu chegou a Havana, em 1979, foi recebido com a mais alta honraria de Cuba. A relação continuou em 1984, quando Mengistu voltou a Cuba como convidado especial de Fidel. Durante suas conversas, os líderes focaram nos esforços conjuntos para combater a seca devastadora que assolava vastas regiões da África. O encontro culminou na assinatura de um acordo de cooperação entre os dois países, selando uma aliança marcada por ideais socialistas e momentos de solidariedade internacional.

3. Bob Marley e o Rastafarismo: Marley considerava Selassié um messias e espalhou sua mensagem em canções como “Jah Live” e “War”, a última baseada em um discurso do imperador na ONU.

”Até que os direitos humanos básicos sejam
igualmente garantidos a todos, sem distinção de raça.
Isso é uma guerra.”
(War – Bob Marley)

Referências:
A Brief Biography of His Imperial Majesty Emperor Haile Selassie I 23 JULY 1892 – 27 AUGUST 1975
https://ethiopiancrown.org/biography-emperor-haile-selassie-i/

Revista Times – 3 de novembro de 1930
https://time.com/archive/6819639/abyssinia-coronation-2/

Mengistu Leaves Ethiopia In Shambles
https://www.washingtonpost.com/archive/politics/1991/05/22/mengistu-leaves-ethiopi a-in-shambles/77631652-4cfb-469a-8af0-d292f1ecc5ec/

Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos
https://www.youtube.com/watch?v=xey37olc7ZI

Jornalista especializado no Chifre da África e na África Austral
https://martinplaut.com/2023/05/23/a-moment-in-history-fidel-castros-visit-to-ethiopia/

Site do Ministério das Relações Exteriores – República Democrática Federal da Etiópia
https://www.gov.br/mre/pt-br/assuntos/relacoes-bilaterais/todos-os-paises/republica-democra tica-federal-da-etiopia

Kapuściński, Ryszard. O Império Africano. Traduzido por Tomasz Barcinski. São Paulo: Companhia das Letras, 1978.

Sobre Fábio ACM

Fábio Morais aka DJ Fábio ACM é jornalista, radialista, DJ e produtor musical. Atualmente coordena a Rádio PT e Radioagência do Partido dos Trabalhadores. Contatos: fabioacm@gmail.com Instagram: @fabioacm Spotify: DJ Fábio ACM

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