quinta-feira, 7 novembro, 2024
Colunista Dudu de Morro Agudo
Colunista Dudu de Morro Agudo

Depois da enchente, uma “sexta-feira treze” da sorte

Ontem foi um dia diferente de todos os dias que eu vivi nesses longos 34 anos de vida. Escrevi este longo texto descrente de que alguém leia até o final, mas com a certeza da obrigação de registrar cada fato ocorrido para lembrar futuramente deste dia que foi tão importante na minha vida.

Cesta Básica no Enraizados
Cestas Básica sendo montadas no Enraizados

Tudo começou no dia 11 de dezembro de 2013, com uma chuva forte, estilo temporal sinistro, que eu via caindo pela janela da minha cozinha e tinha a certeza de que alguém próximo a mim estava sofrendo com aquilo. Depois, no dia 12, o Anderson Leite – sempre ele – me ligou pedindo para usar o Espaço Enraizados para receber mantimentos e roupas para as vítimas da enchente. Logo em seguida lia e compartilhava os posts do Petter MC, que andava pelo bairro, informando ao mundo o que acontecia em Morro Agudo, através de fotografias e entrevistas com moradores, alguns solidários às vítimas e outros a própria vítima.

No mesmo dia recebi uma ligação do Marcelo Peregrino, pedindo para eu abrir o Espaço Enraizados, às 21:30, pois ele estava em frente, em uma Kombi, com o Flávio Maravilha, que havia vindo de Duque de Caxias com 400 quilos de alimentos. Por último, assim que cheguei em casa, o amigo Eduardo Alves (Edu) me enviou uma mensagem via Hangout, dizendo estar disposto a ajudar, porém não ter tempo de vir a Morro Agudo. Pediu-me o número de uma conta-corrente e depositou R$150 para comprar o que eu achasse que era preciso.

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Nosso povo de coração grande.

Ontem, sexta-feira 13, cheguei ao Espaço Enraizados cedo, o Petter MC e a Cristiane Oliveira já estavam. Logo liguei para o Marcelo Peregrino para saber a hora que o André Alasf chegaria. Comecei a montar as cestas básicas. Minutos depois o Petter e à Cristiane Oliveira foram para campo verificar quais as famílias precisavam de nossa ajuda e quais realmente poderíamos ajudar.

O Petter me mandou algumas mensagens via WhatsApp, informando que uma Secretária do Governo do Estado ordenou aos funcionários do CIEP 113 a não deixar os moradores fazerem comida para distribuir aos atingidos pela enchente. Ele me enviou algumas fotografias e eu fiz uma matéria e publique aqui no Portal Enraizados.

Aos poucos as pessoas foram chegando para ajudar. Chegou o André Alasf com o César, em uma pickup, cheia de colchões, roupas e garrafas de água mineral. Depois o Anderson Leite e sua esposa Gisela Barros chegaram com mais mantimentos e roupas.

Alasf foi até um comércio local comprar sacos plásticos para organizar as roupas, enquanto isso eu estava no Supermercados Novo Mundo pedindo sacolas para colocar as cestas básicas. Ao montarmos, percebemos que não havia doação de óleo.
E aí, fazer o que?
Lembramos então dos R$150 reais que o Edu havia depositado. Fomos eu e a Cristiane Oliveira ao supermercados e compramos cerca de 30 garrafas de óleo. A Cristiane lembrou de comprar alho, então compramos mais 30 cabeças de alho.

Voltamos para o Espaço Enraizados e adicionamos o óleo e o alho à cesta básica. Colocamos tudo dentro do carro e fomos aos endereços que eles haviam constatado que poderíamos ajudar.

Minha coluna poderia começar aqui. 

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Petter MC doando as cestas básica.

Eu achei que estava preparado para o que eu veria e sentiria nas próximas horas. Mas não estava. Fomos a uma casa, que eu não sei o nome da rua, mas havia muitas crianças. Uma menina veio nos atender, lembro que a Cristiane perguntou por uma mulher, mãe de uma criança de colo. A menina disse que era ela a mãe da criança e nos convidou a conhecer sua casa. Pegamos algumas roupas e cestas básicas e entramos. Ela dizia que perdeu tudo. Pudemos realmente constatar o que havia acontecido sem ela precisar falar uma só palavra. Tudo estava nítido.

Mas ela não tinha muita coisa, a casa era muito pequena, havia uma geladeira e um fogão, ela disse que nem conseguiu tirá-los na hora da chuva. Ela nos mostrou até onde a água havia chegado. Fiquei chocado. O nível da água havia ultrapassado a cama. O Petter perguntou como ela fez pra dormir.
Ela então disse: – Não dormimos.

Derrepente vizinhos começaram a aparecer pedindo cestas básica e roupas. Eram parentes e vizinhos dela. Fomos ajudando algumas pessoas e fomos para outra parte do bairro, também muito castigada pelo temporal.

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Petter MC e Cristiane Oliveira partindo para a próxima casa.

O Petter em sua moto ia na frente, com a Cristiane na garupa, e eu os seguia de carro. A Cristiane levava uma lista com os endereços e os nomes das pessoas. Chegamos em nosso destino e me deparei com um terreno baldio cheio de móveis que as pessoas jogaram fora após a enchente. É uma cena forte. Procuramos a casa e não conseguíamos achar. Perguntamos a alguns moradores e ninguém dava uma informação precisa.

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Caçadores de rã.

Neste instante passaram alguns adolescentes com umas varas na mão e uma linha. Reparei que haviam duas rãs amarradas pela cintura. Chamei eles pra conversar e perguntei o que eles fariam com os animais.
Eles disseram em coro: – Vamos comer ué!!!
Eram duas rãs pequenas e cinco adolescentes.

A Cristiane finalmente encontrou as pessoas que procurávamos. Novamente haviam algumas crianças presentes. Uma senhora perguntava pelo colchão que a Cristiane havia prometido. Quando a Cristiane confirmou que havia trazido o colchão para a neta dela, o sorriso foi instantâneo. Fui contagiado e sorri também. Quando a Cristiane mostrou o colchão, vi os olhos da senhora lacrimejarem. Olhei novamente para o colchão. Era um colchão velho, que já havia proporcionado muitas boas horas de sono. Mesmo velho ele era muito importante para ela. Passei a entender melhor o tamanho da necessidade das pessoas.

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Senhora conversando com o Petter sobre a situação na beira do rio.

Em frente a casa em que estávamos, havia uma senhora olhando pela grade de um portão. Ela estava esperando o momento de dizer algo. Quando nós olhamos para ela simultaneamente, ela disse: – Vocês podem me dar uma cesta dessas?

Antes que pudéssemos responder, ela completou: – Eu não moro aqui. Moro na beira do rio. Moro sozinha. Perdi tudo. Estou aqui passando roupa para arrumar um dinheiro para comprar comida.

Travei novamente. Pensei com meus botões. Como assim mora sozinha? Ela é uma senhora. Cadê os parentes dela?

Ela nos orientou para que fossemos a beira do rio, pois lá haviam muitas outras famílias que precisavam de um auxilio com urgência. Neste mesmo momento mais pessoas chegavam pedindo cestas básica. Pessoas indicavam outras pessoas, que indicavam outras pessoas. Decidimos ir até a beira do rio para ver como estava a situação por lá.

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Casa mostra até onde o nível da água subiu

Quando chegamos a primeira cena que vi foi uma casa que ficava do outro lado do rio e tinha uma parede ainda úmida que indicava a altura que o nível da água atingiu. Inacreditavelmente triste.

Procuramos algumas pessoas para entregar as cestas.  A Cristiane foi visitar algumas casas que ficavam na beira do rio. Encontrou um rapaz que contou que a casa dele encheu muito, mas que ele não poderia aceitar a cesta básica porque já havia pego no CIEP. Nos indicou uma outra família que estava sem alimento. Atitude louvável, concluímos.

Enquanto íamos na família indicada, encontramos uma moça lavando a calçada em frente sua casa. Ela nos olhava, mas nada dizia. Puxamos assunto e ela disse que queria sim a cesta básica. Disse que estava precisando, mas indicou uma vila com muitas pessoas que também haviam perdido tudo. Fomos. Lá haviam crianças e idosos. Quando nos viram os olhos deles brilharam, mesmo sem saber quem nós éramos e o que fomos fazer lá. As pessoas perguntavam se tinham que nos dar o nome e os documentos ou fazer algum cadastro para pegar a cesta básica. A Cristiane respondia que não, somente tinham que realmente estar precisando e/ou indicar quem estava.

Um jovem nos contou que sua sogra perdeu todo o alimento de casa porque estava trabalhando, quando chegou em casa toda a comida estava boiando.

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Colchões levados pela enchente ficaram presos embaixo da ponte

Ao olhar para o rio, vi muitos colchões agarrados embaixo da ponte, provavelmente vieram com a correnteza.

Voltamos para o Espaço Enraizados. Lá encontramos um outro carro estacionado. Minha filha estava conversando com duas moças. Uma delas – a Andressa – quando me viu falou meu nome, disse que havia falado comigo no telefone mais cedo, eu estava meio anestesiado e não lembrava. Eu estava em transi. A outra se apresentou como Mariana. Algum tempo depois chegou mais um carro. Quando reparei, vi que era a minha professora de inglês da época em que eu estava na oitava série, no Colégio Luiz Silva. Acho que ela nem lembrou de mim, mesmo quando eu a chamei de professora e forcei uma conversa. O importante é que nós nos encontramos quase vinte anos depois, doando nosso tempo e mostrando nossa solidariedade com nossos semelhantes.

Muitas pessoas chegaram no Espaço Enraizados com mantimentos, ligaram, mandaram mensagem nas redes sociais, etc.

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Alasf entregando mais cestas básica.

Por volta das 16 horas, todos foram novamente para a beira do rio, levar mais cestas básica que foram montadas. Eu tive que honrar um compromisso que assumi em Madureira semana atrás e por isso não pude acompanhá-los.

Ao mesmo tempo em que eu estava feliz por ter podido ajudar algumas pessoas, me sentia impotente por saber que por mais que eu ajudasse, dificilmente chegaria a todos os que precisavam. Revoltante ligar a TV e ver políticos mentindo descaradamente para manter a pose. Triste passar na rua e ver pessoa sentadas no bar, bebendo como se nada estivesse acontecendo ao seu redor.

Neste momento são exatamente 03:07 da manhã, estou conversando com o Petter pelo facebook e ele está renderizando um vídeo para postar quase que simultaneamente com este texto. Certamente este vídeo estará no fim deste post. Já nos comprometemos em estar amanhã no Espaço Enraizados amanhã às nova horas da manhã.

Assim termina minha sexta-feira treze!!!

Para saber como chegar no Enraizados clique neste link: http://www.enraizados.com.br/index.php/contato

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Sobre Dudu de Morro Agudo

Rapper, educador popular, produtor cultural, escritor, mestre e doutorando em Educação (UFF). Dudu de Morro Agudo lançou os discos "Rolo Compressor" (2010) e "O Dever Me Chama" (2018); é autor do livro "Enraizados: Os Híbridos Glocais"; Diretor dos documentários "Mães do Hip Hop" (2010) e "O Custo da Oportunidade" (2017). Atualmente atua como diretor geral do Instituto Enraizados; CEO da Hulle Brasil; coordenador do Curso Popular Enraizados.

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3 comentários

  1. Henrique Silveira

    Emocionante.
    Solidariedade e colaboração são sentimentos e práticas que geram esperança em momentos trágicos.
    E manter a Chama da esperança acesa, eh fundamental para nossa condição humana.
    Obrigado pelo relato.

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