O Hip Hop brilhou e celebrou no Festival de Hip Hop do Cerrado

 A 6ª edição aconteceu como parte das comemorações dos 54 anos da Ceilândia

Por DJ Fábio ACM e Giovana Gomes

Era um sábado de previsão de chuva, mas Ceilândia decidiu que o tempo seria outro. As nuvens se seguraram e deram espaço para o brilho do sol, da rima, da batida e do povo. Na Praça do Cidadão, coração pulsante da quebrada, o 6º Festival de Hip Hop do Cerrado tomou forma como um reencontro histórico — e eu, DJ Fábio ACM, tive a honra de estar lá, vivendo cada momento.

Gente de todas as regiões do Distrito Federal se juntou naquele chão sagrado do Hip Hop. Não era só um festival. Era um chamado. Um ato de celebração, resistência e pertencimento. Ali, os quatro elementos estavam em comunhão: os b-boys e b-girls dançavam no chão, rolaram até os clássicos “passinhos”, MCs rimando, os DJs comandando a festa e o graffiti, nas paredes do Jovens de Expressão estampava a alma da Ceilândia.

O camarim não era apenas um bastidor — era um terreiro de afeto, onde a energia entre os artistas era de verdadeira congregação. Ali, cada olhar, cada abraço e cada conversa trazia a certeza de que estávamos fazendo parte de algo maior. Estávamos continuando uma história, escrevendo mais uma página de luta, arte e identidade periférica.

DJ Fábio ACM & DJ Raffa Santoro
DJ Fábio ACM & DJ Raffa Santoro

No centro de tudo isso, um nome: DJ Raffa Santoro. Um dos maiores nomes do Hip Hop nacional. Produtor premiado, DJ de respeito, mestre e inspiração. O culpado — sim, culpado com orgulho — por revelar tantos talentos e por, mais uma vez, reunir o Brasil do Hip Hop na Ceilândia. Ele, filho do maestro Claudio Santoro e da bailarina Gisele Santoro, é a soma perfeita de técnica e paixão. Viveu o exílio com a família na Alemanha, mas voltou pra Brasília e fez da cidade sua bandeira. B-boy, músico, radical, popular, periférico. Raffa é parte viva da nossa história. Seu livro “Trajetória de um Guerreiro” não é só um relato biográfico, é um documento do Brasil que rima, dança, canta e resiste.

E resistimos. Após 11 anos de pausa, o Festival de Hip Hop do Cerrado voltou. E voltou gigante. A 6ª edição aconteceu como parte das comemorações dos 54 anos de Ceilândia — a capital do Hip Hop do DF, berço de grupos como Viela 17, Cirurgia Moral, Álibi, Câmbio Negro, Tropa de Elite e lendas como Japão e DJ Jamaika. Essa cidade, que transformou a dor em arte e a periferia em potência, merecia — e recebeu — um evento à altura.

A Praça do Cidadão virou palco de um espetáculo que reuniu Viela 17, Atitude Feminina, MC Marechal (RJ), Cinthia Savoy (baiana radicada em Florianópolis), F-Dois (Porto Velho, RO), VK (MC de Florianópolis, filho do DJ Monkey), DJ Buiu, DJ Monkey e, claro, ele: G.O.G. — lenda viva do Hip Hop do DF, um dos momentos mais esperados da noite, e que levou o público ao delírio com sua presença.

O festival contou com estrutura de alto nível: painéis de LED, experiências multimídia, lounge, food trucks e entrada gratuita. E mesmo com os ingressos esgotados, o público compareceu em peso. Foi emocionante.
Do palco, vieram as rimas, as batidas e os scratchs. E também vieram as lembranças. Em um dos momentos mais marcantes da noite, o festival prestou homenagens póstumas a dois ícones que já partiram, mas seguem vivos na história do Hip Hop brasileiro: DJ Celsão, do grupo Cirurgia Moral, e DJ Jamaika. A reverência foi justa, merecida e comovente. A memória deles vive em cada batida, em cada verso, em cada jovem que hoje ocupa o microfone e o toca-discos.

Eu estive lá com minha amiga Giovana Gomes, que além de parceira de trampo no jornalismo, é apaixonada por Hip Hop e ajudou a trazer um pouco do protagonismo das mulheres no Hip Hop do Distrito Federal.

A mulher no Rap

Por Giovana Gomes

O rap do Distrito Federal tem sido palco para vozes femininas que transformam realidades e inspiram novas gerações. No Festival Hip Hop no Cerrado, mulheres que moldaram essa cena reafirmaram sua força e legado. O grupo Atitude Feminina, que há 26 anos ocupa espaços no Hip Hop com resistência e autenticidade, teve uma participação marcante. Aninha, uma das idealizadoras do festival, relembra os desafios do início: “Os caras naquela época não queriam a gente”. Mas elas seguiram firmes, construindo um caminho sólido para outras mulheres na música. Helen, também integrante do grupo, resume o impacto de sua trajetória: “Se eu tiver tocado uma mulher, para mim é suficiente”, diz, emocionada.

Giovana Gomes, Hellen e Aninha (Atitude Feminina)
Giovana Gomes, Hellen e Aninha (Atitude Feminina)

Além delas, Cintia Savoy também brilhou no evento, trazendo sua mistura de reggae e rap e reafirmando a potência das mulheres na música urbana. Ex-residente de Ceilândia, Cintia sente a conexão do público com sua arte e valoriza cada troca com quem a escuta. “Sei que Brasília ama o rap, e a Ceilândia é um berço de grandes artistas”, comenta. Com anos de estrada, ela mostra que a música não é apenas entretenimento, mas um instrumento de transformação social. O Festival Hip Hop no Cerrado foi mais uma prova de que o rap do DF segue vivo, forte e, cada vez mais, feminino.

Um pouco da história e da presença dos artistas de outros estados no palco do festival:

F-Dois (Porto Velho, Rondônia)

Diretamente de Porto Velho (RO), o rapper F-Dois celebrou sua participação no 6º Festival de Hip Hop do Cerrado, na Ceilândia, destacando a importância e abrangência do evento, que reúne artistas de todo o Brasil. Ele também esteve presente na 5ª edição e considerou mais uma vez uma experiência única, elogiando a energia do público e a organização do festival. F-Dois ressaltou sua parceria com DJ Raffa Santoro, produtor de todas as suas faixas, incluindo “Quem é Você”, do álbum Pronto para Guerra, disponível no Spotify.

DJ Monkey

Diretamente de Florianópolis, DJ Monkey celebrou sua participação no Festival de Hip Hop do Cerrado, na Ceilândia, ao lado do filho, o rapper e produtor VK. Para ele, foi emocionante unir gerações no palco e compartilhar a caminhada com artistas como Japão e DJ Raffa, que foi peça-chave para abrir portas para VK. Monkey destacou os desafios de se fazer Hip Hop em Santa Catarina, estado com cultura eurocentrada e baixa população negra, e exaltou a importância da Ceilândia como referência para o movimento.

Iniciando sua carreira em 1992, Monkey contou que seu primeiro disco para scratch foi o DJ Scratch, produzido pelo DJ Raffa. Hoje, ele e VK gerenciam um estúdio musical em uma escola de São José (SC), atendendo 120 crianças em contraturno escolar. VK é também o primeiro rapper de sua geração no estado a cursar licenciatura em música pela UDESC. Para Monkey, o Hip Hop vai além da arte: “é ferramenta de transformação social e intergeracional.”

MC VK (Florianópolis, SC)

Com 19 anos, VK iniciou sua trajetória no rap aos 12, influenciado pelo pai, DJ Monkey, e pelo convívio desde a infância com estúdios e artistas em Florianópolis. Em sua fala no palco do 6º Festival de Hip Hop do Cerrado, na Ceilândia, destacou os desafios de fazer rap em Santa Catarina, um estado marcado pela cultura eurocentrada e com poucos espaços para a cena negra. Mesmo assim, ressaltou a qualidade e resistência dos artistas locais.

VK celebrou a oportunidade de dividir palco com nomes como G.O.G., Japão e Atitude Feminina, agradecendo especialmente a DJ Raffa e Japão pelo apoio desde seus 14 anos. Contou também sobre os eventos que fortalece com o pai em Florianópolis, como o tradicional Baile Charme e batalhas de rima. O V de Victor, traz um K, em homenagem ao seu padrinho e pioneiro do Hip Hop em SC, o DJ Kchaça.

Nova edição do festival confirmada

A proposta do festival foi clara e poderosa: descentralizar o eixo Rio-SP e valorizar a cultura periférica, mostrando que a arte que nasce nas bordas transforma o centro. E conseguiu. Com maestria.
A emoção ainda pulsa no meu peito. Vi sorrisos, lágrimas, danças, crianças no ombro dos pais, juventude vibrando, veteranos emocionados. Vi o Hip Hop que me formou e que continua formando tantos. Vi o futuro.

E a melhor notícia: vem mais por aí. Uma nova edição do festival já está confirmada para o segundo semestre. Porque quando a quebrada se levanta, não tem tempo feio que segure.

Sobre Instituto Enraizados

O Instituto Enraizados é uma organização de hip hop, nossa "rede" integra hoje 17 organizações que compartilham conhecimento, capacitação e articulação para militância cultural nas periferias dos grandes centros. Lutamos pelo acesso a produção, a expressão e a valorização das diferentes manifestações culturais, fortalecendo o ativismo cultural e o protagonismo juvenil. O hip hop, o audiovisual, as rádios comunitárias e a produção de mídias são elementos que formam e fortalecem a ajuda mútua dos jovens envolvidos.

Deixe um comentário