Ao refletir sobre a ideia “Educação Clandestina”, penso sobre uma abordagem contrária ao ensino formal e oficial. Quando penso no currículo escolar atual, por exemplo, percebo que meu filho tem acesso aos livros adotados pela escola, nos quais ele aprende técnicas para codificar e decodificar símbolos a fim de se comunicar.
No entanto, transformar essa alfabetização em letramento é uma área na qual a educação brasileira tem falhado se olharmos para as escolas de periferia. Por outro lado, os movimentos sociais estão reunindo uma variedade de conhecimentos, de autores que não estão presentes nessas instituições formais. Esses conhecimentos não se limitam apenas a livros, mas também incluem filmes, podcasts e até encontros entre pessoas, promovendo uma troca que desafia os interesses das elites que controlam o sistema educacional.
A transformação da alfabetização em letramento envolve não apenas aprender a ler e escrever, mas também compreender criticamente o mundo ao seu redor, questionar as estruturas de poder e desenvolver habilidades para participar ativamente na sociedade. Isso é algo que muitas vezes é negligenciado no ensino formal, pois pode ameaçar o status quo e os privilégios de determinados grupos.
A “Educação Clandestina” tem o potencial de despertar o sujeito para a realidade concreta. Quando não encontramos autores como Abdias do Nascimento e Clóvis Moura nas escolas, é porque são escritores que abordam questões relacionadas à realidade de pessoas que estão na base da pirâmide social. Se todas essas pessoas se indignarem, o Brasil entra em colapso. Por isso essas pessoas precisam estar anestesiadas, para a roda continuar girando, para que a engrenagem da desigualdade continue funcionando.
Nossa realidade é tão dura na luta pela sobrevivência, que muitas pessoas entram num processo automático. As pessoas estão vendendo a força de trabalho delas por tão pouco dinheiro, que muitas vezes elas sentem culpa por separar um tempo para pensar sobre a vida. Porque fomos ensinados que a ociosidade, que pensar, que refletir sobre a vida, é “estar à toa”, e ao invés de estarmos à toa, poderíamos estar trabalhando.
A Educação Clandestina, de forma objetiva, representa o momento central da formação política, que é o da ação, onde as pessoas trocam e se libertam, conforme nos lembra Paulo Freire no livro “Pedagogia do Oprimido”. Algumas pessoas com as quais eu converso dizem que tenho manias de persegiução, que isso parece “teoria da conspiração”.
Eu respondo que não, pois é a realidade que vivo e vejo. Percebo que algumas pessoas estão presas em um ciclo de repetição. Elas reproduzem o que ouvem sem refletir sobre isso para que possam criar uma nova narrativa, um novo discurso. Estão presas em um processo de espelhamento, o que é perigoso, pois às vezes propagam as ideias do opressor.
Esses são aspectos que ressaltam a importância da educação clandestina, que vai além do ensino formal e busca capacitar as pessoas para que elas questionem, reflitam e ajam em prol de mudanças sociais. Essa forma de educação permite que as pessoas se identifiquem com as experiências compartilhadas, despertando uma consciência crítica sobre a realidade em que vivem.
É um processo de formação política continuada, que envolve não apenas absorver conhecimento, mas também agir e influenciar outros ao seu redor. Essa educação clandestina é essencial para romper com a repetição de discursos e padrões estabelecidos, permitindo que as pessoas ocupem espaços de protagonismo e se tornem agentes de transformação na sociedade.
Alguns conceitos, quando falamos de educação clandestina, ficam abarcados nela, pois a formação política ocorre em camadas. A primeira camada é a do despertar. Em algum momento, por algum motivo, algumas pessoas saem desse estado de anestesia, e o próximo passo, após o despertar, é o de se indignar.
As pessoas começam a questionar, por exemplo, por que tudo é tão desigual? Por que as coisas estão do jeito que estão? Porque me tratam diferente de outras pessoas?
Jacques Rancière, no livro “O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual”, acredita que todos têm a capacidade de se emancipar, porque todos têm igual inteligência, reconhecendo que todos têm a capacidade de pensar e contribuir para mudanças sociais. Contudo, algumas pessoas não conseguem acessar espaços para desenvolverem essa inteligência. Estão imersas numa rotina tão profunda e anestésica da realidade que não conseguem participar de movimentos que as levem a esse despertar.
A próxima camada é o agir, é se misturar com outras pessoas, e ao se misturar com outras pessoas, é onde inicia-se o processo da “educação clandestina”.
A obviedade da clandestinidade dessa formação reside no fato de que as pessoas percebem que tudo aquilo a que tiveram acesso por vias oficiais até o momento não as fez despertar para a realidade. O despertar, com certeza, foi provocado por alguma atividade que se enquadra no conceito que estamos abordando de educação clandestina, que é essencialmente a ação.
Portanto, o agir individual e coletivo pode envolver, por exemplo, a produção de uma batalha de rimas na comunidade, a realização de encontros para práticas teatrais, rodas de conversa, pré-vestibulares comunitários, ingresso em universidades, disputa por cargos políticos, até mesmo o próprio RapLab, entre outros.
Paulo Freire diferencia a tomada de consciência, que é o despertar para a realidade, da conscientização, que envolve a ação concreta para transformar essa realidade. A conscientização é o processo de agir de forma crítica e reflexiva, engajando-se em atividades que promovam mudanças sociais e políticas.
Essas ações podem variar desde atividades culturais como batalhas de rimas e teatro até engajamento político e acadêmico. Esse processo de conscientização é fundamental para a formação política, pois permite que os indivíduos não apenas reconheçam as injustiças, mas também atuem para combatê-las.
A formação política é um processo contínuo, por isso acredito que o Rap Lab seja um espaço importante para essa formação, pois reúne pessoas com diferentes experiências e níveis de consciência política. Ao mesmo tempo que há indivíduos que ainda não despertaram, existem outros que estão mais avançados nesse processo. Mas, como nos ensina Jacques Rancière, todos têm o poder da igual inteligência, e, portanto, todos podem se desenvolver coletivamente.
Quando afirmamos que no RapLab não há certo e errado, queremos dizer que cada pessoa pode participar a partir de sua vivência, da forma como enxerga o mundo. Ela terá que disputar e defender esse ponto de vista dentro da atividade. É um espaço onde o debate é incentivado e a diversidade de perspectivas é valorizada, contribuindo para o crescimento e desenvolvimento de todos os participantes.
Eu acreditava que durante a pandemia os encontros do RapLab poderiam não acontecer, devido à necessidade de serem realizados online e de forma contínua. Além de não conseguirmos realizar a fase de gravação da música, não tínhamos ideia de como incentivar os participantes a estarem conosco duas vezes por semana. Como coordenador, eu não conseguia antecipadamente pensar em 156 temas para discutir, já que não dominava tantos assuntos.
No entanto, ao dividirmos as responsabilidades com os participantes, escolhendo os temas no momento da atividade, as coisas foram acontecendo de forma natural e os encontros ficando mais interessantes para a maioria dos participantes.
Quando um participante propõe um tema, ele está nos propondo falar sobre aquilo que o afeta naquele momento, e entendendo a realidade dos jovens que estavam inscritos no projeto, acredito que por isso discutimos tantos temas relacionados à “luta de classes”.
Quando um outro jovem propõe algo relacionado com a questão racial, certamente está enfrentando algum problema relacionado ao tema, e discutir sobre essa questão pode, além de ser importante pra quem propôs, afetar também outras pessoas de forma diferente, gerando grandes debates e produzindo conhecimentos.
Mas também houve momentos em que não queríamos discutir nada disso, porque já estávamos cansados, e debater esses temas demandava muita energia. Então, optávamos por falar sobre coisas mais leves como “gírias” ou “desenhos animados”, por exemplo.
Em suma, a reflexão sobre a “Educação Clandestina” revela a necessidade premente de repensar e ampliar os horizontes do sistema educacional tradicional. Ao destacar a importância da conscientização política, da ação crítica e do empoderamento social, esse conceito nos convida a questionar as estruturas de poder e a buscar alternativas que promovam uma educação mais inclusiva, diversa e transformadora. Através da educação clandestina, podemos despertar consciências, ampliar perspectivas e capacitar indivíduos a se tornarem agentes ativos na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. É imperativo reconhecer o potencial dessa abordagem não convencional e investir em iniciativas que fortaleçam sua prática, permitindo que todos tenham acesso a uma educação que vá além do ensino formal e estimule o pensamento crítico, a criatividade e o engajamento.