De súbito, um batalhão de fotógrafos entra na sala. Disparam fotos freneticamente. Movem suas câmeras como franco-atiradores. Ouço metralhadoras. Thiago, ao meu lado, solta uma letra de espanto. Nem pisco. Agentes de terno agradecem e pedem para o batalhão se retirar. Já era.
28 de junho de 2013. Estamos no Palácio do Planalto. No outro extremo da sala, a presidenta Dilma ocupa o centro da mesa em formato de U, entre os ministros Aloizio Mercadante e Gilberto Carvalho. Nas laterais compridas da mesa, somos mais de vinte jovens distribuídos em lugares previamente marcados com nossos nomes. Na minha lateral, na posição mais próxima da autoridade máxima do Brasil, estão a bandeira e a presidenta da União Nacional dos Estudantes (UNE), Virgínia Barros. Na dianteira oposta, vejo a Secretária Nacional de Juventude, Severine Macedo. Em posições diversas, dispõem-se jovens e, em alguns casos, bandeiras, da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES), do Levante Popular da Juventude, da Central Única dos Trabalhadores (CUT), do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), da Marcha Mundial das Mulheres, do Fora do Eixo, da Marcha das Vadias do Distrito Federal, do Conselho Nacional de Juventude, da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen), da Rede Fale, de juventudes partidárias… Estou no fundão. Meu pedaço é um quilombo: Thiago, da Agência Solano Trindade, último da ponta, está à minha esquerda, e Dudu de Morro Agudo, do Movimento Enraizados, à minha direita. Coincidentemente, somos três jovens negros e não pertencemos a organizações tradicionais.
Simpática, Dilma abre os trabalhos. Destaca que o objetivo da audiência é discutir pautas levantadas pelas manifestações que estão acontecendo no país. Situa brevemente o contexto, lamenta a repressão policial ocorrida em São Paulo, repudia a violência, reconhece a legitimidade das vozes que emergem das ruas. Critica o antipartidarismo camuflado por detrás do apartidarismo. Considera importante a sensibilização dos governantes em relação às demandas populares por redução das tarifas do transporte coletivo. Faz uma conta sobre quanto uma trabalhadora autônoma de Valparaíso, periferia colada no Distrito Federal, gastaria para se deslocar diariamente ao Plano Piloto, a Brasília oficial. Conclui que o gasto com transporte pesa no bolso da população e afirma que é relevante diminuir o preço das passagens.
Ela fala, também, da apropriação desigual das cidades e da nada trivial agenda da reforma urbana. Aponta o metrô como uma solução necessária para as grandes concentrações. Reconhece que os protestos expressam um mal-estar em relação aos serviços urbanos e rurais. Discorre sobre educação, saúde, reforma política, redes e comunicação. Admite que não é muito familiarizada com o mundo digital. Analisa que as manifestações tratam de três questões centrais: valores políticos, serviços públicos e representatividade democrática. Defende que o debate sobre o sistema político deve ser apropriado por toda a sociedade – não pode ser coisa apenas de políticos. Diz que quer ouvir as nossas percepções sobre o que está se passando. Ressalta o valor da democracia e se opõe ao elitismo: “na minha época, diziam que o povo não sabia distinguir, não sabia votar”.
PAUTAS COMUNS, EGOS INCOMPATÍVEIS
Na noite anterior, estivemos reunidos na Secretaria Nacional de Juventude (SNJ) para preparar a nossa intervenção na audiência. A secretária Severine explicou que foram convidados jovens de organizações com abrangência nacional e jovens de grupos locais, especialmente de cidades em que os protestos têm sido mais intensos. Recomendou que organizássemos nossas falas de maneira sucinta, já que a audiência com a presidenta duraria cerca de uma hora e meia. Sugeriu que definíssemos algumas pessoas – talvez sete – para falar, mas assinalou que nós é que deveríamos decidir como arranjar essa dinâmica. Deixou explícito, inclusive, que todos poderíamos falar na audiência, mas era fundamental levar em conta as limitações de tempo.
Fizemos uma ótima rodada de falas sobre o que considerávamos questões chaves a serem apresentadas para a presidenta. Encontramos unicidade em torno da defesa de grandes pautas: fim do genocídio da juventude negra e pobre, fortalecimento das políticas públicas de juventude, financiamento da educação, democratização dos meios de comunicação, reforma política e fim do financiamento privado de campanhas eleitorais, contra o avanço das matérias conservadoras no Congresso Nacional (sobretudo Estatuto do Nascituro, “cura gay” e redução da maioridade penal), descriminalização do aborto, laicidade do Estado, desmilitarização das polícias, ampliação do programa Juventude Viva, repúdio à repressão policial nas manifestações, transporte público e mobilidade urbana, reforma agrária, entre outras. Agrupamos as pautas e avaliamos que seria proveitoso articular as falas em oito eixos temáticos, com cinco minutos para cada. Alguns de nós destacamos que a chama das lutas nas ruas deveria ser a tônica da audiência. Pessoalmente, falei da necessidade de denunciar as violações de direitos humanos no contexto dos megaeventos esportivos, como as remoções forçadas, por exemplo, mas esse ponto foi ignorado. Por acaso, ali havia uma parcela considerável de pessoas do mesmo partido do ministro Aldo Rebelo.
Na hora de definir quem assumiria cada eixo, a coisa mudou de figura. Nesse momento, permanecemos na sala apenas os movimentos e alguns técnicos da SNJ, que respeitaram a nossa autonomia no debate. Logo de cara, algumas organizações tradicionais, sobretudo a UNE, tensionaram para que fossem escolhidas as grandes de sempre. Além da UNE, defenderam que a UBES também tivesse poder de fala. Alguns de nós argumentamos que tínhamos poucas vagas e era preciso contemplar a diversidade. Não parecia razoável destinar duas vagas para organizações do campo estudantil, uma vez que outros segmentos estavam de fora. Entretanto, os dirigentes da UNE presentes conseguiram pressionar o coletivo para que ambas estivessem entre as oito. Tudo bem. O pior, a meu ver, ainda estava por vir.
As jovens da Marcha Mundial das Mulheres e da Marcha das Vadias do DF não abriam mão de falar pelo eixo temático contra o machismo e a opressão. Nenhuma delas estava disposta a ceder. Instaurou-se um conflito muito feio. A jovem da Marcha Mundial fez uma defesa baseada na maior representatividade da sua organização, que tem expressão nacional e internacional. A jovem do DF falou do engajamento das vadias nas manifestações e da importância de termos mais grupos locais nas oito vagas. Até então, o único jovem de grupo local escolhido pelo coletivo era Thiago, ativista da cultura periférica no Capão Redondo, em São Paulo. De forma assustadora, uma jovem da UNE desqualificou a fala da jovem do DF, dizendo que a representatividade da Marcha Mundial era mais legítima que a das vadias. Ficou difícil dialogar respeitosamente. Diante do impasse, alguém propôs que se fizesse uma votação.
Alguns de nós discordamos dessa ideia. Posicionando que considerava válido que as duas marchas reivindicassem poder de fala e justificando que o coletivo já tinha criado precedente em uma situação análoga, no caso da UNE e da UBES, sugeri que abríssemos mais uma vaga e contemplássemos as duas. Recuperei a fala da secretária Severine de que, observando as limitações de tempo, a nossa participação na audiência se daria segundo nossos critérios e não havia, em princípio, restrição de vagas. Uma solução, assim, seria redistribuir o tempo de fala em nove intervenções, no lugar de oito. Várias pessoas concordaram com a minha sugestão. No entanto, surpreendentemente, a jovem da Marcha Mundial recusou a proposta. Disse que era uma perda (!!!) incluir as duas marchas, que isso enfraquece a luta das mulheres e por aí vai. Com toda honestidade, não consigo entender esse argumento. Sou feminista e acredito que a sororidade – a solidariedade entre mulheres – é um valor e um dever em qualquer situação. No entanto, o que eu vi prevalecer foi a lógica da competição destrutiva que tanto criticamos nas estruturas patriarcais.
O debate desandou completamente, a ponto de as mulheres terem que sair da sala para conversar sobre como encaminhar a disputa. Lá fora, ânimos exaltados e a confirmação de que não se buscava uma alternativa em que todas sairiam ganhando. Decidiram votar. Eu me recusei a participar disso e me retirei da votação. A Marcha Mundial foi “eleita”.
Já era tarde da noite. Estávamos exaustos. Um pequeno grupo, valente e comprometido, tratou de sistematizar os subtemas dentro de cada eixo. No dia seguinte, faríamos uma fala consensual, unificada, repartida em oito blocos, sendo um deles de abertura e encerramento da sessão.
FALAMOS COM A PRESIDENTA
De volta à audiência, era hora da gente falar. No geral, quase todas as intervenções honraram o combinado. Eu não falei, mas me senti bem representada na voz de Thiago, que trouxe sua própria narrativa e me emocionou ao lembrar a luta da juventude negra e pobre para escapar das estatísticas macabras do genocídio. Ele mencionou as estratégias de resistência nas comunidades, os saraus como tecnologias sociais que estão se espalhando pelo país, a urgência da desmilitarização das polícias, a centralidade da cultura. Thiago falou com o coração e foi o único a arrancar aplausos.
Como era de se esperar, algumas pessoas puxaram a sardinha para suas próprias bandeiras e organizações. Nada demais, é verdade, desde que isso não comprometesse o combinado. Algumas pessoas também usurparam muito mais tempo de fala do que o previsto. Ok, sem crise. O mais complicado, para mim, foi a defesa unilateral do passe estudantil feita pela jovem da UBES, dado que esse ponto não foi consenso do coletivo. Havia diferentes teses em jogo, como o passe livre irrestrito, para todos os jovens, e a tarifa zero. De onde eu venho, o combinado não sai caro.
Nessa atmosfera suspensa, chamou minha atenção a dureza dos discursos de determinadas organizações tradicionais. Repisados há anos, tais discursos se mostraram pouco permeáveis às novas formas de participação juvenil e nem de longe traduziram os acontecimentos das ruas. Muito embora os jovens – ou melhor, as organizações – que os vocalizaram tenham participado dos protestos recentes, sua linguagem soava inabalável e anacrônica. As grandes lutas não estão superadas, é óbvio, mas os tempos são outros e nos desafiam a dialogar com os sentidos e as novidades que as instituições não conseguem captar. Numa olhadela, pude ver a cara de tédio da presidenta quando um desses discursos monótonos entrava na frequência.
E DAÍ?
Com a palavra de volta, Dilma concede “meio segundo” ao ministro Aloizio. Ele repete a análise da presidenta quanto às três características centrais das manifestações. E acrescenta: em sua opinião, o que estamos vivendo é muito diferente das revoltas populares na Europa, no mundo árabe, na Turquia, em Nova Iorque. Nossos problemas, segundo ele, não são a perda de direitos ocasionada pela crise econômica nem a fratura étnico-religiosa da sociedade. O que temos, prossegue, é uma luta por mais direitos, em que a população brasileira percebe que já alcançou níveis básicos de inclusão e agora quer mais.
Parece, realmente, que o ministro não estava nos ouvindo. É inegável que avançamos nos últimos anos, que reduzimos as desigualdades, que atingimos, em certo sentido, melhores condições de vida. Contudo, a isso não corresponde que os direitos fundamentais estão assegurados e, agora, a questão é ir além. Basta ouvir o grito da juventude negra, que lida com o onipresente terror da morte. Existe direito mais básico do que preservar a própria existência? Acho que o ministro perdeu de vista os mecanismos globais e sistêmicos das desigualdades. O Brasil não está sozinho no planeta.
Não temos mais tempo. Na antessala do Palácio, o movimento LGBT espera a presidenta para a próxima audiência. Apressada, ela encerra os trabalhos dizendo que buscará manter esse canal de diálogo com os movimentos. Sem se comprometer com nenhuma das pautas, afirma que é possível que estejamos em contato via plataformas digitais, mas não exclui totalmente a possibilidade de encontros presenciais. Descrença à parte, tomara que isso seja uma oportunidade de aprendizado para ela e todos nós.
Ela se levanta, todos se levantam ansiosos. Já começa uma aglomeração, mas consigo me aproximar. “Presidenta, trouxe para a senhora um material da campanha Juventudes contra Violência, do Fórum das Juventudes da Grande BH”. Ela me abraça e sorri: “você é de BH? Onde você nasceu?”. “Nasci em Tucuruí, no Pará. Sou filha da hidrelétrica”. Ela me olha com olhos brilhantes: “filha da hidrelétrica?!?”. Nossa incrível conversa acaba ali, interrompida por outra pessoa com um presente nas mãos.
Belo relato, tristes episódios e falas repetitivas. Falas e ações comprometidas que mostram o poder da manutenção de espaços contaminados pelo racismo estruturante. Não podemos permitir, e vejo em vocês a nossa grande resistência, que sempre coloquem nossas demandas no final da fila.