Quando digo que mantenho um altarzinho em casa dedicado à Internet, pode parecer um exagero, uma figura de estilo, e quando digo que a Baixada sempre produziu uma arte bastante contemporânea muitas vezes fica soando como uma frase populista, dessas de se jogar pra plateia.
Mas, não; é isso mesmo. Vivo rendendo orações de gratidão no mínimo ao São Tim Bernes-Lee, inventor da web. E cada vez mais me convenço de que não é coincidência o momento de explosão criativa que a região aqui está vivendo e que pode ser conferido facilmente pelas redes. Aliás, essa análise se aplica às periferias de um modo geral, mas concentro o papo na Baixada por ver de perto como o caldo aqui é grosso e nutritivo à vera.
Não é à toa que quando a Internet começou a se popularizar no país foram as periferias que começaram a se apropriar das possibilidades da rede com maior força e ousadia. É como se naturalmente a ficha caísse de que essa janela era a entrada de ar que faltava no cenário em geral sufocante e sufocado do cotidiano de quem nunca deixou a peteca da cultura cair.
Provavelmente, essa apropriação tem a ver com alguns aspectos da própria natureza que as ferramentas da tecnologia digital nos possibilitou.
Por exemplo: a cultura aqui sempre foi multimídia.
Via de regra, os saraus, shows, intervenções artísticas sempre reuniram as linguagens artísticas no mesmo espaço: música, poesia, esquetes teatrais, zine, fotografia… Tudo juntomisturadex. E essas produções sempre foram colaborativas, muito antes dessa palavra invadir o dia a dia de todos.
O som de um, com o microfone e a caixa de baixo do outro, a arte gráfica do amigo, as luminárias de fulana, a comida da mãe do sicrano, o trabalho de elétrica do cara da rua, os instrumentos do parceiro musical, a xerox tirada no trabalho do camarada… Colaboração sempre foi próprio da natureza de tudo o que foi feito, provavelmente uma adaptação dos eventos culturais às tecnologias pedagógicas do mutirão e da viração de laje.
Também a arte produzida aqui sempre flertou com a interatividade, em maior ou menor grau, dependendo de quais eventos; na poesia e no vídeo dos anos 1980 isso era uma característica muito comum, por exemplo.
Esses são alguns dos aspectos que podem elucidar porque a invasão ao universo virtual foi tão forte e marcante para a região. E certamente contribuíram para que as redes sociais refletissem posteriormente essas características.
O que parece ficar claro é que a questão complicadora toda era mesmo de narrativa, de meios de difusão das cenas pulsantes que surgiram em vários momentos e em vários cantos.
No cenário desolador de antes da web como se construíam as míticas? Como se entrava em contato com a cena musical da Baixada? Só existiram bares e points culturais fodas no Baixo Gávea? Quem escrevia sobre o quê de onde? Como se chancelava o que era descolado, cult, contemporâneo? Quem aparecia no cadernos culturais dos jornais?
O esforço no meio cultural exigia um trabalho extra de deslocamento físico e poucos casos conseguiam furar barreiras e contar a história que estava sendo feito ao mesmo tempo em que acontecia. Dois casos emblemáticos são o da cena poética marginal de Nova Iguaçu que a professora Heloísa Buarque de Hollanda detectou e acabou meio que apresentando essa movimentação para o ambiente da classe média do Rio na época.
E o fluxo Rio de Janeiro-Belford Roxo que foi forte o suficiente para apresentar para o mundo a cena do reggae que estava sendo feita naquele momento da meiúca dos oitenta no Centro Cultural Donana. Mas muita, muuita mesmo, história só começou a ficar conhecida depois, sobretudo depois do advento da Internet e principalmente, depois das mídias sociais.
E agora lascou.
Bastou despontar um comecinho de superação da barreira midiática e pronto, a cultura produzida na Baixada vem aí saltando para um pujante protagonismo no Estado e no país. Momento que ainda é visto com certa desconfiança na própria terra, principalmente pelos grupos detentores do poder local; mas que já mostra frutos e aponta caminhos arejados para região.
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