No dia 14 de setembro de 2023, o ativista Paulo Roberto da Silva Lima, conhecido como Paulo Galo ou Galo de Luta, compartilhou parte de sua inspiradora jornada de vida e engajamento social com os jovens membros do Instituto Enraizados, reunidos no Quilombo Enraizados, em Morro Agudo, Nova Iguaçu, RJ. Sua presença marcou um momento de profundo aprendizado e reflexão para todos os presentes.
O conteúdo desta palestra, que será compartilhado em partes, não apenas nos inspira, mas também desafia os jovens a se tornarem agentes de mudança em suas comunidades e sociedade como um todo.
Fique atento às próximas partes deste relato fascinante, que prometem revelar ainda mais insights e lições valiosas extraídas da vida extraordinária de Galo de Luta.
Meu nome é Galo porque antigamente tinha uma moto antiga que chamava “Sete Galo”. Era a CBX 750, o 50 é do jogo do bicho, que é galo. E por isso “Sete Galo”, 750. A “Sete Galo” ficou famosa, era uma moto que, onde eu morava, quem tinha era o rapaziada mais daquele jeitão, que conseguia as coisas.
E eu observava e era louco pra um dia andar nessa moto, ter essa moto. Quando eu era criança eu falava muito dessa moto e aí meu apelido virou “Sete Galo”. Com o tempo, saiu o Sete, e ficou o só o Galo.
E Galo de Luta, foi por causa de uma reportagem que uma jornalista da UOL, chamada Paula, fez. Como ela é ligada ao meio ambiente e protetora dos animais, ela jamais colocaria “Galo de Briga”, então ela colocou “Galo de Luta”.
Certa vez alguém falou que era preciso eu ter um Twitter pra me comunicar com as pessoas. Me perguntaram como é que colocariam o arroba, eu disse que era pra colocar o título da matéria [que a Paula fez], “Galo de Luta”. E a partir daí ficou Galo de Luta, por causa disso.
O Sérgio Vaz, que é um poeta conhecido em São Paulo e no Brasil fala que briga tem hora pra acabar, mas a luta é pra vida toda. Briga é aquilo que tem hora pra acabar. Luta é aquilo pra vida toda.
Hoje eu me enxergo assim, numa luta para vida toda.
É da hora vocês perguntarem isso essa coisa do nome, porque nesta pergunta tem um entendimento pra eu dizer pra vocês como que eu cheguei até aqui. Como que eu me tornei o “Galo de Luta” e como que o “Galo de Luta” passou a ser o cara que faz uma greve de motoboy. Como que o Galo passou a ser o cara que queima a estátua do Borba Gato. Como que o Galo passa a ser esse cara que se sente com autoestima boa pra poder se colocar como intelectual, sentar e falar, discutir ideias.
Quando eu era moleque, meu pai e minha mãe eram um casal de floristas. Antigamente os floristas iam pro meio do mato, extrair as flores e vender no centro.
Uma vez veio um gringo de São Paulo pra fazer um casamento, e ele pagou meu pai e minha mãe em dólar. E aí a gente foi almoçar numa churrascaria. Minha mãe é branca, meu pai é negro. E aí a gente foi almoçar numa churrascaria famosa, e o pessoal passava e não servia carne.
Estávamos eu, meu pai, minha mãe e mais um outro casal de amigos. O pessoal passava e não servia as coisas, meu pai subiu na mesa e começou a sapatear e a cantar um samba. Depois ele começou a imitar o Silvio Santos e falar coisas tipo: – “Quem é que vai servir o crioulo?” E aí criou aquele clima de constrangimento.
Mais pra frente, alguns meses depois, a gente tava num carro, numa Brasília, vindo pra casa. A polícia parou o carro e tirou meu pai de dentro. Eles pediram pro meu pai colocar as mãos pra trás. Meu pai, esse personagem que tem muito orgulho de ser trabalhador, muito orgulho de ser um cara honesto, se negou a colocar a mão pra trás porque ele não queria ser tratado como bandido na frente do filho dele.
Os policiais tentaram quebrar o braço do meu pai, agrediram meu pai, tentaram colocar meu pai na viatura. Minha mãe fez um escândalo. Nesse dia, eu lembro do meu pai chorando e falando pra mim que eu precisava ser respeitado a todo custo. Que eu não podia deixar ninguém me desrespeitar.
Por que eu tô contando essa história?
Porque se a gente parar pra analisar a vida da gente, a gente vai ver que quem teve base, foi mais longe. E quem não teve base, acabou ficando pelo caminho.
Quão importante é você ter um pai, uma mãe, mesmo que o pai e a mãe não sejam tão presentes, ou que não tenham tanta condição [financeira], ou seja, aquele pai e a aquela mãe que são trabalhadores. Mas ter eles ali [por perto], dá uma base forte pra você perceber que não está sozinho nesse mundo. Te dá uma instrução.
Meus amigos que cresceram comigo, que, ou não teve pai, ou só tinha mãe, e a mãe era muito mais mãe do filho da patroa do que dele, eu vi o caminho deles todos entortarem.
E eles eram seres humanos capazes de estar fazendo o que eu tô fazendo hoje. Eles eram donos de uma intelectualidade foda, e eu fui vendo eles ficando pelo caminho.
Por isso que eu tô contando essa história, pra gente também, em algum momento, discutir isso. Sobre a gente ser tudo do mesmo território, mas perceber que uns tem algumas vantagens, que outros não tem.
Eu tive essa vantagem de ter um pai e uma mãe, trabalhadores. Eu não os via na minha infância, nem na minha juventude. Quando eles saiam para trabalhar eu estava dormindo e quando eles voltavam eu estava dormindo.
Não via nem a cara deles, mas eu não posso cobrar a presença deles. Eu tive um teto.
Quando alguém no meio da quebrada bateu na minha cara, eu falei pro meu pai, e meu pai foi lá cobrar. Isso faz toda a diferença na vida de uma criança.
A partir daí eu fui buscar referências de respeito na minha quebrada. E quem eram as pessoas que eram respeitadas? Eram esses caras, que eram bandidos, que tinham a motocicleta “Sete Galo”, que tinham corrente de ouro, que andavam armados, que tinham tênis da Nike. Então, eu estava observando, olhando tudo isso e pensando que esse era o caminho para ser respeitado.
Meu pai falou que eu preciso ser respeitado. E esse é o caminho para ser respeitado.
Eu fiquei ali por perto. Quando foi que eu me liguei que talvez não era tão bacana ser isso daí? Quando eu vi a polícia chegar. A polícia chegava, dava tapa na cara do bandido, o bandido abaixava a cabeça. Ou então pedia um acerto, e tudo o que o bandido tinha arrecadado ele dava pro policial.
Ou então levava o cara preso. Ou então a viatura aparecia lá no início da favela, e os bandidos corriam pra cá pro final. Eu percebia que esses caras não eram tão respeitados assim, porque tinha gente que desrespeitava eles.
Foi quando escutei um rap no rádio. Esse rap xingava a polícia. O cara não só xingava a polícia, mas xingava e falava o nome dele. Ei, sou eu, Mano Brown, moro no Capão Redondo.
Mano Brown parecia um profeta. Parecia Moisés em cima da montanha falando comigo. Eu pensava que o Mano Brown era o maior bandido da história. Ele era tão foda que tocava no rádio e ele falava o nome dele, ele falava o nome do bairro dele. Ele não tinha medo da polícia.
Perto dele esses caras da minha quebrada eram “bunda mole”. Se for pra eu ser um rapper, eu tenho que ser um rapper igual a esse cara.
E então eu fui começar a buscar quem é que fazia rap na minha quebrada e eu descobri um cara que se chama Dugueto Shabazz. Esse cara ficava numa praça. Naquela época não era só o rap, naquela época era o hip hop. Tem uma diferença entre rap e hip hop. Hip hop é o break, o grafite, o DJ, o MC. Ele é mais complexo, ele tem uma história mais complexa.
Rap é uma coisa que vem depois. Rap já é um pouquinho mais egocêntrico, rap já é um pouquinho menos “movimento”. Ele é importante, ele é revolucionário, só que o hip hop é o completo. O hip hop é o completo da história.
Naquela época eu acessei esse personagem Dugueto Shabazz, que era integrante da posse de hip hop “Sindicato Urbano de Atitude”, e eu escutei um rap dele.
Vou fazer o rap pra vocês verem aqui, pra vocês terem noção de como é que era:
Minha palavra é um incêndio que se alastra, conflagra e flagra
abre as chagas, oxigênio não se acaba.
Chama alimentada pelo ódio do inimigo,
sistema do ópio que deixa o povo dividido,
prédios imponentes e favelas submissa,
a grande obra-prima do sistema capitalista.
Somente com muitos muros se constrói esse sistema,
burguesia em quarentena, refém da própria doença,
desperdício, luxúria, status, ostentação.
Cercos do poder, focos da infecção.
O que corre na veia do ser opressor
é a prepotência de quem se julga superior,
que se transforma em ódio e irradia a epidemia.
A burguesia sofre de guetofobia
e nem a medicina encontrou o antídoto.
Não há vacina pra pobreza de espírito,
mal galopante, agudo, crônico.
O preconceito é um sinal e o terminal é um pânico.
Sua febre ferve, colera transparente.
Tem só nojo de pobre ou medo da brava gente,
Sua combiça típica consumista gera o medo.
Constrói um condomínio pra viver longe do gueto.
Aumenta a desigualdade, mas não convive com ela.
Provoca o trauma, mas não responde pela sequela.
Nos mantém desassistidos, de refém, longe dos livros.
Sem condição, identidade, mas ainda estamos vivos.
Sua meta é impedir que venha a surgir
em pleno século XXI um novo zumbi.
Somos todos reféns de um assalto que nunca acaba.
Somos a margem de erro de um plano senzala.
(Dughetto Shabazz)
Quando eu ouvi essas palavras, eu confesso que as palavras eram impactantes. A forma que elas estavam sendo colocadas era impactante, mas eu não conseguia juntar uma na outra de uma forma [entendível]. Ele está falando de zumbi, ele está falando da burguesia, ele está falando do gueto, ele está falando sobre várias coisas que, de certa forma, eu entendo mais ou menos, mas também não entendo completamente. De uma coisa eu sei. Ele não é o Mano Brown, mas ele é bom. Eu preciso achar esse cara.
Esse cara morava no meu bairro. Eu fui até essa praça onde ele estava e me apresetei: – “Eu sou o ‘Sete Galo’. Sou do Guaraú e eu queria saber como é que eu faço pra escrever um rap igual o seu”.
Ele me disse: – “Escrever um rap igual ao meu não é fácil não, moleque. Você chega aqui, quer escrever um rap igual ao meu da noite pro dia? Eu li muito livro.
Ele me levou na casa dele, tinha uma prateleira de livro imensa. Eu me desesperei, porque eu sempre fui mal na escola. Eu odiava a escola. Eu achava que estava no caminho de virar bandido e ia ter que ler. Porque pra mim, o rapper era um bandido. Eu tô falando da mentalidade de uma criança de 12 anos de idade.
Ele perguntou se eu queria mesmo aprender a cantar um rap, em seguida me deu um livro. Ele me leu um livro chamado “Negras Raízes”, que é do autor Alex Halley, era uma bíblia de 500 páginas.
Fui pra casa xingando esse cara. Dogueto, maldito. Eu tenho que achar um Mano Brown, com certeza ele não vai me dar um livro.
Mas depois eu tentei ler. Demorei muito tempo pra conseguir sair da primeira página, porque eu não entendia. Mas depois que eu entendi o que estava sendo escrito ali, eu desenvolvi a leitura. Confesso que foi a leitura mais difícil que eu fiz na minha vida.
Existem duas leituras que eu fiz que foram muito difíceis. Uma foi o Negras Raízes e outra foi o Quarto de Despejo, da Carolina Maria de Jesus. Porque você lê chorando, você lê dando soco, porque parece que é sua mãe quem escreveu. Parece que é sua vizinha quem escreveu. Parece que é seu povo quem escreveu aquilo ali.
São coisas que ela vai escrevendo que você lê e fala: – “Não acredito!”. Porque dói demais.
Eu li o Negras Raízes, escrevi um rap e mostrei pra ele (Shabazz). Ele falou que o rap estava melhorzinho.
Mais uma vez eu não acreditei que o cara me fez ler uma bíblia e depois falou que o meu rap estava “melhorzinho”. Ele falou que o próximo ficaria melhor. Perguntou se eu queria ler outro livro para ficar melhor. Eu falei: – “Vai, me dá essa bosta aí, me dá esse outro livro aí”. Ele me deu um Malcolm X, e aí minha vida mudou.
Minha vida mudou, eu nunca mais fui o mesmo. Como eu achava que “rapper” era bandido, e depois que eu comecei a ler a história do Malcolm X, boa parte dela é a história de um bandido.
Pra quem não conhece a história do Malcolm, ele primeiro é o Malcolm Little, uma criança. Depois ele passa a ser o Detroit Red, que é um bandido perigoso. Depois ele vira o Satã dentro da cadeia. Na cadeia ele conhece o Islã, e aí ele vira o Malcolm X.
E depois, na parte mais intelectualizada da sua vida, na fase mais poderosa, ele vira o Malik el-Shabazz. Ele tem várias fases. A parte do Detroit Red, que era o bandido, me pegou muito. E era o começo do livro.
Então aquele livro eu já não li como o Negras Raízes com dificuldade. Aquele livro eu já li e achei muito interessante. Tanto que eu tinha 12 anos de idade e com 16 anos de idade eu virei muçulmano. De tão a sério que eu levei aquelas ideias, eu queria me transformar no Malcolm.
Eu queria ser o Malcolm, eu queria mudar o mundo como aquele cara mudou. Pra mim o Brown era foda, mas o Malcolm era como se fosse o pai do Brown. Eu precisava ser o Malcolm, eu precisava ser incrível.
Nós, muitas vezes, temos esse perfil meio profético, nós ligamos a televisão, vemos o Jay-Z dançando num barco. Pensamos: – “Nossa, um dia eu vou ser igual a esse negão aí. Botar uma garrafa de champanhe num barco, vou ter uma casaca branca. Pô, minha vida vai ser tão da hora como a que esse cara tá vivendo no clipe”.
Minha rua se chamava Rua da Lama, era uma rua de terra. E eu estava em casa assistindo a TV querendo ser o Jay-Z.
Olha a maldade. Não tem asfalto na rua, mas cada casa tem uma TV. Não é estranho isso?
Então eu tava ali assistindo o Jay-Z na TV, e quando eu saía tinha até porco na minha rua. Minha rua parecia uma fazenda. Tinha porco, tinha galinha, e no bar estava tocando o “Mastruz com Leite”.
Não vai dar pra ser o Jay-Z. Vou tentar mirar no Chimbinha, é mais fácil, porque o Jay-Z vai ser difícil, olha esse porco. Não tinha um porco no clipe do Jay-Z.
Essa é maldade que fazem com a gente. Mostram um mundo bonito pra gente pela caixa, pela televisão, e depois a sua realidade não te permite isso. E se você não aceitar a sua realidade, eles te jogam dentro de uma cadeia.
Ficar na rua custa caro. Custa muito caro. Todos vocês que estão aqui, vocês estão pagando um preço muito caro. E se vocês não pagarem esse preço, inevitavelmente vocês vão parar dentro de uma cadeia, vocês vão parar dentro de um hospício, vocês vão parar dentro de uma cracolândia, vocês vão parar dentro dos piores lugares que a sociedade reserva pra nós.
Então é melhor reservar um tempo da sua vida pra vir aqui, pra debater as ideias, pra vir no Enraizados, pra poder entender as ideias, custa muito caro.
E eu sei o quanto custa. Eu sei o quanto me custava sair da minha favela para ir até a favela do Dughetto pra pedir um livro. Atravessar aquele mar e voltar com aquele livro. E achava que era impossível de um livro me ajudar. Como eu iria conseguir comprar aquele tênis que eu vi? Será que eu vou conseguir ser o Jay-Z? Será que eu vou conseguir essas coisas com esse livro?
Eu me perguntava, mano. Mas eu consegui muito mais. Eu mirei no Jay-Z, eu acertei num lugar que eu não esperava. Eu mirei no Jay-Z e acabei acertando em Palmares.
Mirei no Jay-Z, mirei no Mano Brown, mirei nos bandidos da minha quebrada e acertei em Palmares. Descobri coisas que eu não imaginava que eu descobriria. E acabei chegando no ponto onde eu tô aqui hoje.
O que que aconteceu, mano? O que que aconteceu?
Num determinado momento da minha vida eu tentei ser o Jay-Z e não consegui. E aí a minha barriga começou a roncar mais alto que o meu sonho.
O irmão Dudu de Morro Agudo falou uma coisa hoje muito interessante hoje. Ele disse que tem um momento da sua vida que você não tem um passarinho pra você dar água, mas quando esse passarinho aparece, a sua vida já era irmão. Sua vida já era. Você vai olhar pra toda merda que deu na sua vida e não vai deixar isso acontecer com o seu filho. Você vai dar seus braços e suas pernas por eles.
E aí você morreu!!! Essa é a verdade. Aí você morreu!!!
Porque a gente fala do genocídio do povo negro no Brasil de uma forma que parece que morrer é só tomar um tiro e ir pra debaixo da terra. Ser atendente do Mc Donald’s também é morrer. Ser o atendente do mercado da esquina, do cara ali que te explora, onde você trabalha 12 horas por dia e não tem perspectiva, também é morrer.
Você vira um morto-vivo, você vira um zumbi. Você já viu um trabalhador voltando pra casa? Depois de 12 horas de trabalho em um dia dia, ele volta de cabeça baixa. Ele não é ninguém. Ele passou o dia inteiro pegando caixa, recebendo ordem. Ele não é ninguém, ele é uma coisa. Esse cara morreu. Esse cara morreu, pode ter certeza.
E nessa daí da minha barriga roncar e eu precisar cuidar da minha família, eu morri. Eu morri tanto que eu senti saudade de tomar um enquadro [da polícia].
Sabe o que que é isso? Você sentir saudades de tomar um enquadro?
Porque quando eu era jovem, quando eu tinha meu cabelo, ora meu cabelo estava black, ora meu cabelo estava trançado, minhas calças largas. Eu andava pela rua com aquela autoestima. Ninguém sabia meu nome, ninguém sabia quem eu era, mas eu tomava três enquadros por dia.
Então, de alguma forma, algum perigo eu oferecia. De alguma forma eu me sentia importante. Eu sou chave. Eu assumi essa postura, eu sou um cara chave. Sou um cara perigoso. Se é o que tem pra mim, é o que eu vou assumir.
De repente eu estava em cima de uma moto, com uma caixa de pizza nas costas, esperando um pedido pra poder levar comida pra minha casa.
E sonhando, né? Aquela imagem do Jay-Z num barco, com champanhe na mão, aquela profecia nunca saiu da minha cabeça.
Às vezes, eu até xingava Deus. Falava, porra, Deus, você me mostrou a profecia e me deixou aqui, em cima de uma moto, com uma caixa de pizza nas costas. Por que você me mostrou o Jay-Z, mano? Não me mostrasse esse bagulho, mano. Me deixasse na ignorância.
Vocês que estão aqui buscando sabedoria, chega uma hora, se é que já não chegou, que vocês vão sentir saudade da ignorância.
Quando eu não sabia dessas coisas era melhor, quando eu não sabia dessas coisas eu convivia melhor, eu vivia melhor, eu não era tão revoltado, eu não era tão agressivo, eu aceitava melhor as coisas.
Mas não se enganem. Era melhor ser escravo? É melhor estar em Palmares, onde a gente planta e a gente come o que a gente planta. Eles vão vir e vão matar todo mundo, mas é muito melhor estar aqui.
A gente à pouco estava discutindo aquela frase: “Viver pouco como rei ou muito como Zé?”. Viver pouco como um rei no capitalismo também não é bom, mas assumir essa personalidade do tudo ou nada de forma revolucionária, ela é libertadora.
Não importa se a ideia é branca, se o capitalismo vai vir pra cima, é isso que eu sou, é isso que eu defendo e eu vou até o final. Isso é liberdade, eu não troco isso por nada.
De vez em quando me dá saudade da ignorância. Mas ela vai embora rápido também. Dá saudade quando começa a faltar alguma coisa dentro de casa, quando a situação fica difícil.
Se eu fosse só um atendente do Mc Donald’s, eu não tava passando por isso. Mas eu sou um sonhador, né? Tô sonhando com palmares, mas nenhum lugar pra plantar eu tenho.
Aí dá essa saudade mesmo. Mas quando você vê toda a autoestima que você tem, todo o conhecimento que você tem, e tudo que você está construindo, você estabelece que aquilo ali vale a pena.
Então eu estava em cima de uma moto, pensando no Jay-Z, parado na esquina, quando, de repente, cruzou um moleque de cabelo trançado e calça larga. A Polícia manda ele colocar as mãos na na cabeça. Enquadrou o moleque.
Quem já tomou enquadro sabe como é. Abre as pernas, o policial já dá um soco no meio das suas partes genitais, que é pra dizer que quem manda são eles. Já tira toda a sua autoridade ali.
E o moleque tomou o soco dele, ficou de boa, entregou o documento. O policial ficou enchendo o saco do moleque. De repente, o policial desistiu do moleque, entregou o documento dele, e então o moleque foi embora.
Em seguida o policial entrou no carro, passou na minha frente. Em câmera lenta. E disse: – “Ô”. E foi embora.
Na minha mente, eu falei: – “Ô, o caralho!!! Ô, seu desgraçado! Ô! Eu não ia ser o Jay-Z? O que aconteceu comigo? Virei amigo do polícia? Não, não. Me enquadra igual você fez com aquele moleque ali!”
Impossível, as coisas deram errado na minha vida, eu tô morto.
Foi aí que eu pensei que estava com saudades de tomar enquadro. Porque ali eu era só um comprador de fralda, um pagador de aluguel. Eu não era mais nada. A única coisa que fazia eu continuar vivo era o sorriso da minha filha.
Chegava em casa com a cabeça abaixo, minha filha vinha, me abraçava. Aí eu falava, eu aguento mais um dia. Pela minha filha.
Sabe o que o policial quis dizer com aquele “ô”? Ele falou assim pra mim: – “É assim que nós gostamos de você. Entendeu? Zé Povinho, trabalhador, se humilhando, baixando a cabeça pra nós. Agora você é gente. Aquele ali é um animal. E é assim que tratamos o animal. Quando você era animal, nós te tratávamos assim. Mas agora que você é gente…”
Foi isso que o policial quis dizer pra mim. Foi como um tiro, um impacto na minha vida. Ali eu questionei o mundo inteiro. Eu questionei tudo.
Até que um dia eu fui bloqueado no iFood e fiz um vídeo falando assim: – “Sabe como é difícil carregar comida nas costas de barriga vazia?”
Esse vídeo deu um milhão de acessos na internet. As pessoas se comoveram. Apareceu o Luciano Huck me ligando, achando que eu estava com fome, queria me levar no Restaurante Fasano pra comer.
Mas isso fica pro próximo texto.