Raulf Henrique Gomes Jatobá, de 20 anos, é natural de Rocha Miranda, situada na Zona Norte do Rio de Janeiro. Iniciou no RapLab em 2020, aos 16 anos de idade. Destacou-se como um dos participantes mais assíduos, participando de aproximadamente 90 encontros de um total de 150.
É importante ressaltar que sua participação no projeto teve início a partir do trigésimo encontro. Atualmente, ele se identifica como Jatobá.
Tive uma conversa com ele em 28 de março de 2024, de cerca de 40 minutos, discutindo sua participação no RapLab durante o período da pandemia.
Convidei-o para revisitar comigo esse período, visando ajudar-me a responder algumas questões para minha tese de doutorado, principalmente relacionadas ao conceito de formação política e o papel do RapLab nesse processo, contudo a conversa abriu caminho para diversas reflexões.
A seguir, trago uma transcrição de nossa conversa, destacando os pontos abordados por Jatobá.
Para iniciar a conversa, perguntei como ele tomou conhecimento dos encontros do RapLab durante a pandemia.
Em seguida, explorei qual encontro teve o maior impacto nele, falamos sobre o tema mais recorrente “a luta de classes” e, finalmente, sobre sua compreensão sobre o que é formação política.
Como você ficou sabendo dos encontros do RapLab durante a pandemia?
Eu sempre fiz parte do movimento estudantil. Na época, o GB (Montsho) estava envolvido também. Ele acabou me convidando para o RapLab. Como eu já estava envolvido com arte e cultura, me interessei.
Acreditei que poderia ser interessante. Ele tinha mandado pra rapaziada do coletivo. Tanto é que, na época, veio o Lil, o Paulo, o Santoro, uma rapaziada assim. Quando ele (GB Montsho) )divulgou pra mim, eu achei que fosse algo pontual. Que era uma oficina e acabou. Acreditei que não fosse algo que tivesse uma continuidade, assim, toda semana, sabe?
Depois que eu fui entender que fazia parte de algo maior, que havia outras ações também, tá ligado? Foi quando eu conheci o Enraizados e todo mundo que é de lá.
Qual foi sua primeira impressão quando foi convidado para participar? Como você interpretou o convite inicial? Pode descrever a sua impressão sobre a dinâmica das atividades e o objetivo por trás delas?
Eu achei que era uma oficina que ia morrer ali. Que não teria outras edições, uma continuidade, sabe? Achei bem interessante, acho que por causa da organicidade de como tudo se dava, em cada dinâmica, e essa sensação também de que você está sendo representado mesmo que não escolha a frase [do rap] necessariamente.
Porque às vezes a tua ideia gerava uma reflexão, e a outra pessoa dava uma palavra, e uma terceira pessoa pegava essa palavra e criava uma frase. Essa sensação de um pensar coletivo. De uma reflexão coletiva. De um espaço para troca. Uma troca natural. Eu acho que esse ritual semanal foi pra mim o grande diferencial, esse rolê da continuidade.
Porque querendo ou não, não é que uma oficina pontual não seja efetiva, ela tem a sua relevância, mas a continuidade dá espaço para essa formação mais aprofundada. É como quando você planta algo, qualquer coisa que seja. Não é do dia pra noite que vai florescer. Tem que plantar, ficar regando, regando, regando todo dia.
Acho que isso tem a ver com esse lance de formação política, no sentido de que é uma parada que está em constante construção. E nunca vai chegar ao ponto final, é sempre continuidade.
Muitas pessoas que participaram do RapLab durante a pandemia foram apenas duas ou três vezes, sem continuar tanto. O que te motivou a participar de tantos encontros do RapLab?
Eu acho que, sendo muito sincero, a principal coisa que eu vi ali naquele momento e não vi em outro lugar durante toda a minha vida em que eu já trabalhei com arte, com cultura, foi ali, onde mais percebi a essência do hip-hop, porque para mim a essência do hip-hop é a coletividade, é entender que somos um coletivo, entende?
O hip-hop surge no meio de várias brigas de facção e usa a arte e a cultura simplesmente como uma forma de explicar que a gente não precisa ficar se matando. A gente consegue ver quem é melhor, digamos assim, por meio da arte. Um batalhando contra o outro de diferentes formas. Aí vem vários fundamentos, desde as batalhas às festas.
Várias batalhas de MC, de dança, de Bboy. Eu acho que esse espaço coletivo é útil para que possamos entender as nossas diferenças. E a partir dessas diferenças entender que tem uma coisa ali que une a gente.
A partir desse coletivo, construir conhecimento, gerar arte, diversão, tá ligado?
Eu acho que esse é o principal potencial do Rap Lab. Esse é um espaço orgânico, uma parada que se tu olhar de fora, sem entender a profundidade dele, vai pensar que é simplesmente uma troca de ideia de maluco, que no final os caras fazem um rap. Mas o bagulho tem várias trocas, várias produções de conhecimento.
Eu estava numa fase de reflexão e compreendi que as coisas surgem da troca de ideias, de descobrir, na verdade, essa potência da troca de ideias, que é algo muito menosprezado, considerando o que é geralmente valorizado como cultura. Essa troca de ideias é vista como uma sub-epistemologia, digamos assim.
E é algo muito comum no cotidiano das periferias, das favelas, a troca de ideia é uma das coisas mais presentes ali. E geralmente é a principal terapia.Por isso, às vezes, o RapLab era justamente esse espaço para mim também. Como o RapLab tinha essa questão de você escolher o tema, eu pensei que era uma oportunidade de expressar as coisas que estavam presas na cabeça há anos. Coisas que nunca tive oportunidade de desabafar, de trocar ideias mais profundas com alguém, ainda mais para desenvolver em rap.
Quanto ao rap, já era algo que eu estava com “sangue no olho”, fazendo todo dia. Uma coisa que eu amava fazer. Então, acho que essa própria experiência de fazer um rap coletivo já é muito massa, porque eu sempre fiz sozinho. Então, a experiência de fazer algo coletivo, pra mim era muito incrível.
Eu nunca tinha pisado no estúdio. A primeira vez que eu pisei pra gravar foi no Enraizados, a partir do RapLab. Depois eu fui em outro estúdio para gravar uma cypher, mas mesmo assim, pra ser muito sincero, de lá pra cá ainda não é uma vivência que eu tenho. Porque pra escrever eu preciso de um papel e caneta, e hoje em dia nem do papel e caneta, com o celular eu consigo escrever tranquilo.
Mas pro estúdio já demanda uma outra condição financeira, um outro investimento, um outro recurso para estar no estúdio, de você ter um beat. E se você está indo pro estúdio, você já pensa em lançar música. Então, você precisa ter algum produtor pra mixar, masterizar, é outro rolê de investimento também.
Qual dos encontros do RapLab mais te marcou? Se não me engano, fizemos 156 encontros. Você consegue lembrar de algum que te marcou especialmente? Vamos refletir sobre isso por um momento.
Tiveram vários encontros que me marcaram, vários que foram muito legais, aquelas trocas que davam vontade de ficar ali umas cinco horas trocando ideia. Nem dava vontade de nem fazer o rap. Mas a gente ainda tinha um cronograma, um horário ali para cumprir.
Mas teve um específico que eu acho que foi um dos que mais me marcou, que foi um rap que fizemos só com gírias. Porque é algo que desde cedo, desde pequeno, sempre esteve presente em todos os espaços que frequentei. Sempre teve esse aspecto de ter um linguajar diferente, esse linguajar que é visto como um sublinguajar, digamos assim, uma sublinguagem, é visto como menor.
Então fizemos um rap só com gírias, uma música inteira usando apenas gírias. Cada verso tinha uma gíria. Fizemos isso porque a Olga, quando chegou nos encontros, não entendia o que era “ainda”, ou algo assim. Então decidimos fazer uma música para ensinar para a Olga.
Por que você acha que a maioria das conversas no RapLab se concentrava tanto na questão da luta de classes?
Porque não tem como não falar. São coisas que constituem, fundamentalmente, a nossa identidade social. Então elas vão estar presentes ali. São coisas que a gente lida direto, todo dia. E quando falo “a gente”, tô falando da periferia, do pobre, do trabalhador, quem tá nesse espaço de marginalização.
Mas dentro disso tem vários outros recortes que foram abarcados em cada edição (do RapLab) específica. Teve edição que a gente tinha um recorte mais de pessoas pretas, tinha outras edições que a gente falava de outros recortes, como a realidade da mulher, disso e daquilo, dessa intersecção entre vários recortes sociais.
A gente foi construindo essa troca que acaba sendo plural, no sentido de que envolve pessoas com diferentes realidades, identidades sociais. E de certa forma, acredito que isso tenha sido espontâneo também. Acredito muito nisso, porque o tema era escolhido na hora. Por não ser algo pré-estabelecido, do tipo “o tema vai ser esse e pronto”.
Se fosse assim, acho que dificilmente teria participado de tantas edições, se já houvesse um tema pré-definido. Às vezes estou num dia em que estou muito inclinado a falar sobre algo específico, e se surgir outro tema com o qual não estou conectado naquele momento, já não me interesso tanto. Acredito que essa flexibilidade seja importante também.
Por exemplo, esse RapLab específico das gírias, onde fizemos um rap usando apenas gírias, eu acho que marcou porque em qualquer espaço que eu estivesse, sempre me vi sendo visto como uma pessoa diferente, olhado de forma diferente, como se as pessoas dissessem “olha aquele cara ali, falando estranho”.
Então ver isso partindo de outra rapaziada, fazendo isso junto também, e ver isso no produto final, foi bom. Acho que outra parada que eu gostei foi a leveza desse assunto. Como a gente sempre falava sobre luta em toda edição, chegava um momento em que a gente pensava: “Pô, só estamos falando sobre isso, vamos abordar algo que seja nosso, algo que a gente não precise ficar batendo neurose.”
Foi uma questão mesmo de afirmação nesse sentido, sabe? E não deixa de ser luta no sentido de você reafirmar o modo de fala que já tem uma contundência só por existir. Eu lembro que era uma letra que falava de várias coisas, falava de marcar com a mina, não sei mais o que. Falava várias coisas de uma forma muito orgânica, porque tinha um menino que estava paquerando uma menina de Manaus e trouxe essa discussão pro RapLab.
O que você entende por formação política?
Eu acredito que a formação política é uma parada que é continuada, ela nunca termina, ela tem um momento tipo de um start inicial. Eu acredito que esse momento é justamente quando a gente desperta esse senso crítico em relação ao mundo.
A gente desperta essa indignação com o mundo, que a gente percebe as coisas que acontecem, então a gente se entende como um ser político. Entende que o político não é simplesmente a parada chata que a gente tem que ir de 4 em 4 anos votar, digo, de dois em dois, no caso.
Que é muito mais um rolê que é feito no dia-a-dia. Eu acho que essa virada de chave pra mim foi quando eu entendi a micropolítica como muito mais presente e eficaz do que a macropolítica. E eu acho que também a micropolítica me fez acreditar na política de certa forma. A gente é irrelevante pro macro, a gente não tem força, a gente é impotente pra mudar alguma coisa.
O próprio RapLab é um ótimo exemplo de micropolítica. Esse processo de despertar a consciência, de gerar um senso crítico, promover uma produção de conhecimento, a troca de ideia, a reflexão sobre determinados assuntos e pautas, esse desenvolvimento interno. Isso porque o público principal do Rap Lab era muito jovem.
Esse papo de autoconhecimento, todo esse desenvolvimento pessoal, ao gerar isso em cada indivíduo, esse conhecimento que se desenvolvia organicamente a cada semana, é um ótimo exemplo de micropolítica.
Outro exemplo de micropolítica é a leitura de um texto teatral em grupo, ou então um sarau. São atividades que não necessariamente precisam estar ligadas à arte, mas fazem parte do cotidiano. Por exemplo, um evento beneficente na comunidade, como um corte de cabelo grátis, isso é micropolítica. São várias ações que ocorrem fora do contexto geral, macro.
Enquanto os políticos podem fazer mudanças que afetam a vida de todos com uma simples canetada, com a micropolítica você vai cultivando aos poucos, movimentando gradualmente e despertando essa percepção do que é essa formação política também.
Porque formação política parte do ponto que você se entende como ser político. Então, eu acho que quando você se entende como ser político, tu entende que, primeiro precisa entender o que aconteceu na história, no passado, para não repetir as mesmas besteiras que ocorreram. Entender o contexto de tudo, entender o contexto atual, e ser visionário no sentido de entender para onde as coisas estão caminhando também. Se está caminhando para tal lado, entender que alguns caminhos não são interessantes, então é necessário tentar mudar a nossa direção. Acho que é nesse sentido.
Você já usou o RapLab fora do nosso grupo? Se sim, onde e como foi essa experiência?
Já utilizei o RapLab, não de forma literal, mas naquela ideia da antropofagia cultural, de me inspirar em certos aspectos do RapLab. Por exemplo, na metodologia das oficinas que eu dou atualmente pelo “VidArtEducação”, elas partem de um caminho que foi influenciado pelo RapLab em vários aspectos.
Além disso, ao longo dos últimos sete anos, tive outras influências neste percurso artístico e cultural, mas o RapLab foi uma das mais significativas.
Qual é a atividade que você está realizando hoje? Quem é o Raulf atualmente?
Eu sou graduando em Filosofia, estou no quinto período no Pedro II e sou um artista múltiplo. A primeira coisa que eu penso é que sou um artista múltiplo. Que se eu começar a destrinchar, digo que faço isso e faço aquilo, as pessoas começam a rir, porque acham que não é possível.
Até que ponto o RapLab foi importante para transformar Raulf em Jatobá?
Eu sou uma pessoa que acredita profundamente no rolê do “efeito borboleta”. Então, cada coisinha que está envolvida na minha história, na minha trajetória, constitui o que eu sou hoje.
No final das contas, é sempre sobre o pequeno, sobre a relevância do pequeno. E não no pequeno no sentido de menosprezar, mas pelo contrário, de potencializar aquilo, de entender a importância do pequeno diante da conjuntura como um todo.
Eu tenho certeza, não é uma especulação, que se não fosse pelo RapLab eu não seria quem eu sou hoje, não teria a mesma profundidade em relação à minha arte, à escrita, a tudo, da construção que eu tenho hoje. Contribuiu demais nessa produção de conhecimento, a produção da cosmopercepção, de mundo, de tudo.
Muitas vezes, o que faz a pessoa querer estar no RapLab também é a troca de corredor, que é para além da atividade em si. Que seria toda a relação de afeto que tem entre eu e tu, o Dorgo, o Baltar, eu e todos na comunidade do Enraizados, que construímos ao longo do tempo.
Acredito que, querendo ou não, afeto também é uma palavra-chave nesse contexto como um todo. Só consigo ser afetado pelo conhecimento, por aquela informação, ou qualquer coisa que seja, a partir do momento em que há afeto envolvido. Acreditando muito nesse conceito do efeito borboleta, no qual pequenas ações têm grandes repercussões, o RapLab contribuiu significativamente para transformar quem eu era na pessoa que sou hoje.
Em vez de perguntar o que o RapLab significa para você, gostaria que você me mostrasse como você convidaria um jovem amigo ou amiga para participar do RapLab.
Uma pessoa que está na mesma realidade que eu. Primeira coisa, pergunto a ela se já produziu uma música ou se já se imaginou produzindo uma. Depois, eu conto que o RapLab é literalmente uma atividade na qual, a partir de uma troca de ideias, nós vamos produzir uma música e, no final, ela sairá sendo co-autora dela.
Eu diria: “E aí, tropa, tá ligado, bora? O bagulho é tranquilão, tu vai chegar lá, você pode inclusive escolher o tema que a gente vai trocar ideia. Chega lá, troca ideia, depois tem vários momentos da dinâmica, tu vai falar umas palavras, depois vai falar uns versos e no final vai sair uma música”.
Aí o maluco vai falar: – “Pô, mentira!!! Como assim, cara?”
Eu acho que hoje em dia isso é um pouco menos, mas historicamente foi muito construída essa ideia em relação à arte, quem produz isso tem dom, já nasce com esse bagulho, essa elitização partia muito desse discurso. Eu acho que a ideia é quebrar com isso de uma forma que seja orgânica, que seja simples, demonstrado que dá pra fazer.
Essa é a forma mais simples e direta também de quebrar com esse paradigma.
É uma música com a mesma potência das músicas que são “estouradas”; muitas vezes, o que difere é o dinheiro investido na divulgação, no marketing, etc., e não a qualidade do produto cultural em si.
Para convencer uma diretora de escola, você utilizaria os mesmos argumentos?
Eu acredito que de uma pessoa pra outra já é outro discurso, porque cada pessoa é única, cada pessoa tem uma particularidade que você tem que ir naquela particularidade da pessoa, não tem como você generalizar. Eu acho que, inclusive, esse é um dos maiores problemas da educação como um todo.
Acho que a forma que eu chegaria nessa diretora, primeiro dando a entender pra ela o que aquilo poderia agregar na escola dela, de uma forma geral. Mas antes disso eu tenho que entender também com o que ela se preocupa, se ela está preocupada realmente com o desenvolvimento dos estudantes, ou se ela está preocupada com outras coisas.
Vou falar que o RapLab é uma metodologia de ensino que acredita na construção coletiva, na participação de todos, até mesmo aqueles alunos que são mais difíceis, aqueles alunos que costumam não participar das atividades.
É um ambiente de troca e de protagonismo do educando num processo de ensino-aprendizagem, onde eles contribuem para construção de um produto artístico-cultural, que é uma música, um rap, que vai ser construído no final e gravado.
Ressaltar a ressonância que essa atividade terá naquela turma específica, e cada estudante compreenderá também que, para além daquele momento específico, terá a oportunidade de construir isso em outros momentos, podendo dar continuidade ao processo. É importante que o estudante compreenda a construção do conhecimento e perceba a importância de sua presença na sala de aula, participando ativamente do processo. Ele se afetar e afetar os outros, em relação a essa troca.
De dar mais espaço e abertura para o professor, permitindo que ele absorva ideias que antes talvez fossem bloqueadas.
Entender também a atmosfera que o RapLab transmite, de ser uma atividade para todos, pois é coletiva. Não seria possível limitá-la a um grupo específico, e acredito que muitas das falhas das atividades propostas pela escola, pelo sistema educacional tradicional, estão justamente nisso. Elas são direcionadas para uma camada específica, para os alunos que são “nerds” e gostam daquilo, mas nem todos têm esse interesse.
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