Hoje trago para compartilhar com vocês, leitores do Portal Enraizados, um conto que fiz no meu início de carreira, e que foi publicado originalmente na Revista Caros Amigos.
Toda brisa tem o seu dia de ventania
O Itaim Paulista dorme.
É noite no último bairro da Zona Leste de São Paulo. Assim que o sol nascer será mais uma quinta feira,dia de trabalho. Se for verdade que o paulistano é viciado em trabalho, André é um destes maníacos. Que acredita na força do trabalho, que acredita estar no caminho certo, acredita que um dia a vida dura vai melhorar, mas até chegar esse dia não se cansa de trabalhar. Pula da cama as cindo da madrugada todo dia e só volta da lida com a lua no céu.
Nem para pagar as contas o dinheiro dá, então hora extra para completar. Deus abençoa não ter que pagar aluguel, mora com mulher e filho nos fundos da casa da mãe, a pequena casa de dois cômodos. Não falta amor e as necessidades e dificuldades são encaradas de frente. André ultimamente anda meio puto da vida com uma porrada de coisa que vê no dia a dia. Não entende como tem tanto pobre num país tão rico. Como tantos políticos são corruptos, só pensam em roubar.
Como tantas bandas boas ralam no subúrbio e só artista queridinho da mídia vão repentinamente nos programas. Outra coisa que faz André perder o sono é a respeito com que o seu patrão trata ele e seus amigos de trabalho. O coreano trata a todos aos berros, nunca deve ter ouvido falar em respeitar para ser respeitado. André acha que até que até pelo fato do patrão ser estrangeiro, deveria ter educação com seus funcionários. Todos brasileiros.
Todos baianos, pernambucanos, mineiros, paulistanos, todos filhos dessa terra amada. Mas a qualquer atraso de um funcionário o patrão já esculachava no meio da loja, na frente de qualquer um, aos gritos. Outro fato que enchia André de indignação era o coreano falando mal do Brasil o tempo todo. Reclama daqui, critica dali, mas embora que é bom, nem pensar. Também no seu país de origem dificilmente ele teria uma mansão como aqui, casa na praia e carro de luxo que por segurança ele mandou blindar. Se já não bastasse o mau trato do patrão, à tarde que chegava era a patroa e os três filhos.
Os moleques mexem com um e outro, destratam o cortador, incomodam as vendedoras e ninguém fala nada, pela frente é claro, porque por trás falam os bichos dos três monstrinhos, digo, filhinhos do patrão. André é estoquista, no meio da bagunça organizada do estoque ele sabe onde está tudo, grita lá de baixo que o André manda. Os cortes certos, as peças corretas. Há dois anos André presta serviços na loja e aguarda o prometido aumento salarial que o coreano lhe prometera se ele tiver um pouco mais de paciência. Quinta, 03 de maio de 2001, André pula da cama ao som do despertador, os ponteiros marcam cinco horas da manhã, quase que automaticamente ele toma banho, prepara uma mamadeira para quando o filho acordar.
Um beijo na esposa, que lhe deseja um bom dia, ele deseja o mesmo e parte. O sol ainda não está no céu, a escuridão ainda prevalece, mas como milhares de trabalhadores ele nem tomou café da manhã e na bolsa já carrega a marmita, já pensa no almoço antes mesmo do café. André acha que toda empresa deveria dar tíquete refeição. Na bolsa, também, vai dois livros, um que ele está acabando de ler e outro que ele não vê a hora de começar. Apesar do salário baixo e de todas as dificuldades, sempre que sobra algum, André passa num sebo e adquire um livro. Seu passatempo predileto nas conduções é ler, do Itaim Pta.
Ao Brás são quarenta minutos diários de leitura na ida e outros quarentas na volta. Isso quando amigos não chamam para jogar uma sueca, o jogo oficial da linha variant dos trens da CPTM (Companhia Municipal de Trens Metropolitanos). Seis horas e André vê um tumulto na frente da estação do Itaim, os trens, para variar, estão com problemas, segundo um cartaz, um trem tinha descarrilado e os trens circulavam com atraso e maiores intervalos nas estações. Mesmo não estando em condições de prestar um bom atendimento ao usuário a CPTM não abre mão de cobrar a passagem. Alguns vão para o ponto de ônibus.
Como de ônibus era certeza de atraso, André apostou no trem e embarcou, o trem que ele pegou ficou quinze a vinte minutos sem sair do lugar, neste tempo toda a composição superlotou, o animo para ler o livro que estava na bolsa fora embora, não dá mais nem para pegar a bolsa. A viagem de quarenta minutos chega, neste dia, a uma hora e meia.
André no meio da viagem se pergunta porque a CPTM não utiliza os trens de 12 vagões, já que estão com problemas no percurso, mas parece que de propósito só circula trem de 6 vagões, como se o pobre merecesse sofrer. A pessoa sente-se numa lata de sardinha. Cansado, desanimado, amassado e humilhado, André desembarca no Brás, as oito da manhã. Nem o cansaço, nem a irritação pela péssima viagem fazem André esquecer o coreano. Ele caminha rapidamente, passa as catracas, desvia dos que andam vagarosamente, desviadas pessoas paradas vendendo passe em frente à estação, desvia das inúmeras barracas dos camelôs, cruza como um raio o Largo da Concórdia e as oito e dez entra na loja, que fica na Rua Maria Marcolina.
O coreano olha automaticamente para o relógio na parede, quarenta minutos de atraso. O patrão dispara uma metralhadora giratória: – Atrasado de novo André, pelo amor de Deus! Será que eu falo grego, não vou permitir atrasos, acorde mais cedo, mude de condução, faça o que você quiser, mas chegue no horário. Vai dizer que foi o trem? De novo o trem? Ou sua vó morreu de novo? O coreano não parava de falar, nem se importava com a presença de três fregueses, nem muito menos com os demais funcionários que olhavam para André, que estava ali parado, só ouvindo. Todos esperando suas explicações.
Surpreendentemente André gritou: – Cheeegaaa…!!!
O queixo do coreano quase caiu, seus olhos se arregalaram, ele não pensou duas vezes e disse que André estava despedido. André riu, começou a rir muito, quase chorou de tanto rir. Depois falou: – Antes de ir embora, gostaria de lhe falar. Subiu no balcão e pegou o relógio na parede, voltou as horas para cinco da manhã, tacou o relógio no chão de modo que ele quebrou com os ponteiros marcando cinco horas. André prosseguiu.
Frente a frente com o patrão, que estava sem reação, começou a falar: – Agora você vai ouvir tudo que eu passei das cinco da manhã até agora… O coreano tentava se safar e André o segurava pelo colarinho. A platéia aumentou e todos ouviram as explicações de André, o coreano não falou mais uma palavra.
Quando André terminou, o patrão falou: – Esquece isso André e vai trabalhar. – Trabalhar? Eu me demito, ouviu, eu não serei nunca humilhado por você, eu me demito.
Me demito… M E D E M I T O ….
Então ele virou as costa e partiu, pegou o trem, tirou o livro que lia, parece que só os textos de João Antonio o compreendem, ele chega em casa e mesmo desempregado é recebido com um sorriso pela mulher e com festa pelo filho.